sábado, 27 de novembro de 2010

CONSTRUIR CAMINHOS DE DIÁLOGO - UMA NECESSIDADE PREMENTE

A União das Misericórdias Portuguesas (UMP) foi criada com o primeiro e principal objectivo de as Misericóridas se apresentarem a uma voz junto das entidades, desde logo, as de tutela que Religiosa (Bispos e Conferência Episcopal) quer Civel (Estado/Governo).
Para tal era fundamental dotá-la de representantes das Misericórdias o que lhes garantisse uma identidade institucional colectiva. Para além dessa capacidade de representação identitária entenderam os Dirigentes das Misericórdias que a UMP deveria ser dirigida por quem conhecesse, profundamente, a realidade do universo institucional constituído pelas Santas Casas da Misericórdia de Portugal. E ainda por quem estivesse disponível para assumir as "despesas" de um diálogo que se revelava, absolutamente, imprescindível para salvaguarda da acção assistencial e patriomonial das Misericórdias.
Pela actualidade e acuidade com que se coloca a questão do diálogo é importante reflectir sobre o estado actual da "arte".
Para tal iremos debruçar-nos e analisar sobre o diálogo que os actuais "dirigentes" da UMP praticam.
Comecemos então pelas demonstrações de diálogo entre esta/actual UMP e a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP).
Começemos então com o período pós morte do DR. VIRGÍLIO LOPES.
Quem se lhe seguiu jamais tomou a iniciativa de dialogar com a CEP tal como se tinha comprometido com os Provedores que o convidaram e nele votaram. Durante 15 anos não só não tomou qualquer iniciativa,conhecida, de diálogo como até impediu que várias iniciativas tomadas por vários grupos de Provedores tivessem a sequência que a generalidade esperava.
Também dentro da UMP "impôs" que o tema da natureza jurídico-canónica das Misericórdias fosse alguma vez abordado.
E assim se passaram 15 anos na vida da UMP e, consequentemente, das Misericórdias.
Já em 2007, aquando da posse dos membros dos órgãos sociais onde, eventualmente, pontificou o seguinte aconteceu um facto elucidativo do confronto com a CEP assumido.
Esse facto que foi omitido desde então - Janeiro de 2007 - descreve-se de uma forma muito simples.
Algumas Misericórdias tomaram a iniciativa de solicitar a intervenção da CEP já que consideraram ter havido ilegalidades e irregularidades no acto eleitoral. Confrontada com o relato dos factos expostos e com a marcação do acto de posse para a Igreja das Irmãs Missionárias de Maria (ao Campo Pequeno) a CEP oficia a UMP para que esta adie essa mesma posse pois o assunto foi mandado estudar por um Grupo de Trabalho especializado em Direito Canónico.
Os "dirigentes" da UMP,pura e simplesmente, ignoraram a decisão da CEP e no próprio dia da sua posse alteraramo local. Em sbstituição da posse na referida Igreja realizaram-na no Hotel Berna, desrespeitando, assim, uma determinação da Tutela.
A CEP, na posse do Relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho que tinha nomeado para apreciação da questão emitiu um Decretoque foi enviado à UMP e à(s) Misericórdia(s) que tenham solicitado a sua intervenção.
Quer a razão da alteração dolocal da posse dos "dirigentes" do mandato anterior quer o conteúdo do Relatório produzido quer do Decreto da CEP foram sempre omitidos (não foram dados a conhecer) às Misericórdias.
Já no mandato anterior e depois de a Escola de Enfermagem ter sido integrada na Universidade Católica,pouco aí se manteve,pois no ano,imediatamente, seguinte os "dirigentes" da UMP decidiram,ao que se sabe, unilateralmente, retirarem a Escola de Enfermagem da Universidade Cátólica.No ano de 2009 decidiram realizar um "Congresso" na Ilha da Madeira. O "presidente" da direcção nacional acompanhado por um "vogal" suplente deslocou-se à Madeira para convidar o Presidente do Governo Regional e o Bispo do Funchal. Quando este convite lhe foi dirigido o Presidente do Governo Regional informou que tem um acordo como Senhor Bispo do Funchal que em sessões públicas em que ambos participam e no caso de se tratar de organizações ligadas à Igreja, ele cede a presidência da sessão ao Senhor Bispo.
Esta informação do Presidente do Governo Regional foi suficiente para que o "presidente" da direcção nacional da UMP não convidasse o Senhor Bispo do Funchal para a sessão de abertura desse "congresso"
Recentemente, os "presidentes" da direcção e do Conselho Nacional organizaram uma reunião do Conselho Nacional na qual propuseram não dialogar mais com a Conferência Episcopal.
Estes factos serão, suficientemente, elucidativos da incapacidade de diálogo demonstrada.
Há uma sequência de factos ao longo do tempo de clara hostilização, senão mesmo ostracização, aos membros da Hierarquia da Igreja quer individual quer colectivamente.
Perante esta série de factos só se pode concluir que as iniciativas de vontade de dialogar foi sempre daquele que está sentado na cadeira do "poder" executivo da União das Misericórdias Portuguesas.
Acresce ainda que já este ano os "dirigentes" da UMP estão a dialogar com a CEP por intermédio de um interlocutor que é nem mais nem menos que o Presidente da Direcção da CNIS - Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade.
A aceitação desta situação os "dirigentes" daUMP apoucaram-se ainda mais. E demonstra que estes "dirigentes"não têm a mínima capacidade de diálogo com a CEP.
A aceitação desta situação de os "dirigentes" da UMP dialogarem com a CEP atarvés do Presidente da CNIS étanto mais surpreendente quando este ano de 2010, o "presidente" da Direcção Nacional da UMP, emitiu uma Circular a recomendar às Misericórdias a sua saída da CNIS.
Ora acontece que na Direcção da CNIS há mais Provedores do que na Direcção Nacional da UMP e fazendo fé em fontes de informação credíveis, mais de metade das Misericórdias Portuguesas está filiada na CNIS.
Está, assim, claro que "dirigentes" da UMP jamais quiseram dialogar, ou jamais demonstraram disponibilidade para tal, com a Igreja, nomeadamente, a Conferência Episcopal Portuguesa.
Só assim se justifica que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), em 2008, tenha aprovado as "NORMAS GERAIS PARA AS ASSOCIAÇÕES DE FIÉIS" e em 2010 tenha aprovado o DECRETO GERAL SOBRE AS MISERICÓRDIAS sem ouvir a UMP.
De acordo com as informações publicadas em muitos órgãos da comunicação social quem continuou a manter abertura total para o diálogo foi a Conferência Episcopal enquanto os "presidentes" da Direcção e do Conselho Nacional recusaram, liminarmente, essa possibilidade.
Poder-se-ia, então, pensar que os actuais "dirigentes" da UMP só não dialogam com a CEP.
Mas, vamos "ler" outros factos publicados.
No Verão passado os Portugueses foram informados que alguns SAP?s de hospitais das Misericórdias iriam de ser comparticipados pelo Ministério da Saúde o que tornava inviável a sua continuidade.
O "presidente" da Direcção nacional da UMP fez declarações manifestando a sua surpresa pela iniciativa unilateral da Ministério da saúde, o que demonstra que também com este Ministério a UMP não dialoga.
Conforme se pode constatar no post, imediatamente, anterior a este não há acordo entre o Ministério da Saúde e a UMP relativo a um novo Protocolo de Cooperação, o que também demonstra ausência de diálogo.
Outro tanro se poderia referir, relativamente, aos cuidados continuados, para já não se falar do Protocolo de Cooperação assinado em Setembro de 1995 sobre o qual ainda não foi iniciado qualquer diálogo, conhecido.
Tudo isto serve para demonstrar que os actuais "dirigentes" da UMP também não dialogam com com o Ministério da Saúde.
Então, os actuais "dirigentes" da UMP para além de não dialogarem com a CEP também não dialogam com o Ministério da Saúde (MS).
Vejamos agora a "capacidade" de diálogo desses mesmos "dirigentes" da UMPcom o Ministério da educação. Há vários anos que os valores das comparticipações a pagar por este Ministério são fixados por despacho do membro do Governo. Este facto vem demonstrar que também com o Ministério da Educação os actuais "dirigentes" da UMP não dialogam.
Então, os actuais "dirigentes" da UMP não dialogam com a CEP, nem com o MS, nem com o Ministério da Educação (ME).
No ano de 2009 o Ministério do Trabalho e da Segurança Social fez publicar uma Portaria de Extensão relativamente a relações de trabalho entre as Misericórdias e os seus trabalhadores.
Acontece que as Portarias de Extensão são uma iniciativa governamental quando não há acordo entre os representantes das entidades "patronais" e os sindicatos.
O que a publicação desta Portaria de Extensão vem demonstrar é que os actuais "dirigentes" da UMO não são capazes de dialogar com os sindicatos.
Outro facto que demonstra que assim é aconteceu já em 2010 quando os sidicatos tomaram a iniciativa de dialogar directamente com cada uma das Misericórdias propondo-lhes a celebração de acordo de trabalho sem a intervenção dos actuais "diriegentes" da UMP.
Estes factos demonstram que também com os sindicatos os actuais "dirigentes" da UMP não são capazes de dialogar.
Então poder-se-á concluir que os actuais "dirigentes" da UMP não dialogam com a CEP, nem com o MS, nem com o ME, nem com os Sindicatos.
Mas a ausência de diálogo não se queda por aqui. Estamos, praticamente, no final do ano de 2010 e ainda não se vislumbra qualquer possibilidade de acordo ou de diálogo com o Ministério do Trabalho e da Segurança Social relativo à assinatura de Protocolo de Cooperação para 2010.
Então também se poderá concluir que os actuais "dirigentes" da UMP não são capazes de dialogar com o Ministério do Trabalho e da Segurança Social.
De tudo o que atrás se descreve poder-se-á concluir que:
- os actuais "dirigentes" da União das Misericórdias Portuguesas não dialogam com a Conferência Episcopal Portuguesa, não dialogam com o Ministério da Saúde, não dialogam com o Ministério da Educação, não dialogam como o Ministério do Trabalho e da segurança Social, não dialogam com as centrais Sindicais.
- os actuais "dirigentes" da União das Misericórdias Portuguesas não dialogam com as entidades que justificaram a fundação da UMP há 34 anos.
A questão que se põe é, então, a seguinte:
- para que serve, esta UMP, se não é capaz de cumprir a missão para que foi fundada?

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Acordos entre ministério e misericórdias assinados ainda este ano

Garantia dada pela União das Misericórdias
Acordos entre ministério e misericórdias assinados ainda este ano
23.11.2010 - 08:11 Por Lusa

O presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, afirmou-se convicto de que os protocolos de prestação de cuidados de saúde entre Ministério da Saúde e misericórdias serão assinados ainda este ano, mas com meses de atraso.
À margem de um debate sobre cuidados continuados, Manuel Lemos afirmou esta segunda-feira que a União está a negociar com o Estado a definição dos valores dos actos médicos praticados nos hospitais das misericórdias. Os acordos entre o Estado e as misericórdias deviam ter sido assinados em Março deste ano, mas, segundo Manuel Lemos, o ministério quer que cada acto médico tenha um valor único, independentemente do que seja.

A União de Misericórdias não concorda e quer que "o Estado assuma as suas responsabilidades", disse Manuel Lemos. Referindo-se aos acordos das misericórdias com o Estado para os cuidados continuados, o responsável disse que o problema principal não são os atrasos nos pagamentos, mas os preços mal definidos na altura da redacção dos protocolos.

"Os valores foram impostos [pelo Governo] e não houve negociação. Depois, o Estado diz que temos que fazer mais do que foi acordado, aumentando as exigências", afirmou. Manuel Lemos lamentou ainda que existam atrasos nos pagamentos devidos às misericórdias, dando o exemplo da Autoridade Regional de Saúde do Norte, que está com um atraso "de cinco meses". "Estes atrasos provocam desequilíbrios, mas não é isso que põe em risco a prestação de cuidados. O que põe são os preços mal feitos de início", reiterou.

Público

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Misericórdias. Venda de imóveis

PARECERES DOS SERVIÇOS JURÍDICOS

Parecer proferido no processo nº C.N. 36/97 DSJ

Misericórdias. Venda de imóveis

1. A Santa Casa da Misericórida do ... solicita o parecer da Direcção-Geral sobre a questão da exigibilidade, para venda de imóvel deliberada pela Assembleia Geral, do cumprimento do preceituado no artigo 23º, nº 3, do Decreto-Lei nº 119/83, de 25/2, (Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social).
A questão suscita-se porque, para titular venda de imóvel, a notária de ... “exigiu que lhe fosse entregue o documento previsto no artigo 23º, nº 3, do Decreto-Lei nº 119/83, ..., sem o qual não efectuaria a escritura de Compra e Venda referida”.
Diz-se que “Tendo sido consultados os serviços jurídicos da Tutela Eclesiástica, deram estes o parecer de que, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 69º do referido Decreto-Lei, e dado o seu carácter de Instituição erecta canonicamente, não necessita, para efeitos de alienação, do cumprimento do disposto no nº 3 do artigo 23º do mesmo Decreto.”
2. A solicitação destes Serviços, a senhora notária pronunciou-se, considerando “Por força do disposto nos nºs 1, 2 e 3 do artigo 69º do Decreto-Lei nº 119/83 ... resulta estarem as Irmandades das Misericórdias sujeitas ás disposições aplicáveis às Associações de Solidariedade Social, não tendo sido intenção do legislador fazer a sua exclusão do referido regime o que resulta claramente da letra da lei.
E de outro modo não se compreenderia, face à missão de que estão investidas, Solidariedade Social, conceito claramente definido no artigo 1º do referido decreto-lei e pelo qual pautam a sua actuação.
As referidas entidades, beneficiam de fundos e subsídios, e são-lhe concedidas determinadas regalias (isenções de contribuições e impostos) pelo Ministério da Solidariedade e Segurança Social, no qual devem estar registadas, à semelhança de todas as outras instituições de Segurança Social.
Não creio pois, que o Caracter de Instituição Erecta Canonicamente, seja motivo suficiente para afastar as Irmandades das Misericórdias do regime do referido diploma, não nos convencendo pois a referida argumentação.
Interprete-se pois, o referido artigo 23º, deste resulta que antes de efectuado qualquer acto de alienação, devem as entidades em causa recorrer ao parecer de um perito, pessoa tecnicamente credenciada para o efeito e a par do mercado imobiliário, de modo que a mesma estabeleça uma avaliação correcta e actualizada do valor do imóvel que se pretende alienar, para só depois se poder concluir se daquele acto de alienação resultam vantagens para a Misericórdia.
Não nos parece pois que a sujeição das referidas entidades à disiplina do referido decreto lei e nomeadamente ao seu artigo 23º, acarrete qualquer prejuízo para as mesmas entidades, antes pelo contrário. salvaguarda e acautela os fins a que as mesmas se destinam.”
3. Incluído no capítulo I (“Das instituições particulares de solidariedade social em geral”), secção II (“Da criação, da organização interna e da extinção das instituições”), subsecção III (“Da gestão”), o artigo 23º dispõe:
“1 - ... a alienação e o arrendamento de imóveis pertencentes ás instituições, deverá ser feita em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente.
2 - Podem ser efectuadas vendas ou arrendamentos por negociação directa, quando seja previsível que daí decorram vantagens para a instituição ou por motivo de urgência, fundamentado em acta.
3 - Em qualquer caso, os preços e rendas aceites não podem ser inferiores aos que vigorarem no mercado normal de imóveis e arrendamentos, de harmonia com os valores estabelecidos em peritagem oficial.
4 - ................................................................” No capítulo II (“Das actividades de solidariedade social das organizações religiosas”), secção II (“Disposições especiais para as instituições da Igreja Católica”), o artigo 44º estabelece que “A aplicação das disposições do presente Estatuto às instituições da igreja católica é feita com respeito pelas disposições da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940.”
E o artigo 48º que “Sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais.”
Por seu turno, no capítulo III (“Das instituições particulares de solidariedade social em especial”), secção II (“Das irmandades da Misericórdia), o artigo 69º dispõe
“1 - Às irmandades da Misericórdia aplica-se directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes são próprias.
2 - Em tudo o que não se encontra especialmente estabelecido na presente secção, as irmandades da Misericórdia regulam-se pelas disposições aplicáveis às associações de solidariedade social.
3 - Ressalva-se da aplicação do preceituado no nº 1 tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social.”
Da concordada, o artigo IV dispõe
“As associações ou organizações a que se refere o artigo anterior, podem adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos por que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administramse livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica. Se, porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e de beneficiência em cumprimento de deveres estatutários ou ..., ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza”.
4 - Em acórdão de 11 de Julho de 1985, do Supremo Tribunal de Justiça, diz-se:
“Determina-se nos cânones 298 e 299 do Código de Direito Canónico em vigor, que os fiéis podem, por meio de convénio privado celebrado entre si, constituir associações para promoverem o culto público ou a doutrina cristã ou outras obras de apostolado, como o trabalho de evangelização, o exercício de obras de piedade e de caridade e informarem a ordem temporal com o espírito cristão.
Estas associações de fiéis carecem da aprovação dos seus estatutos pela autoridade competente da Igreja, e estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica para que nelas se mantenha a integridade da fé e dos costumes, vigilância que, no tocante ás associações diocesanas compete ao Ordinário do lugar (cânone 305, 1º e 2º)
........................................................................
Em 7 de Maio de 1940 Portugal celebrou com a Santa Sé uma Concordata, ractificada em 1 de Junho imediato. E por via desse instrumento diplomático a Igreja Católica pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir por essa forma associações, corporações ou institutos religiosos, canonicamente erectos - a que o estado português reconhece personalidade jurídica (artigo 3º)-, sendo susceptíveis de adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos em que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, administrando-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica.
E se para além dos fins religiosos se propuserem também os fins de assistência e beneficiência ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para essas associações ou corporações, o qual regime se tornará efectivo através do Ordinário competente e não poderá ser mais gravoso do que o estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza (artigo 4º).
Face a este último passo no texto da Concordata, Quelhas Bigote escreveu em 1959 que o Ordinário organizará e dirigirá a vida assistencial no ponto de vista económico e financeiro das associações segundo as leis que o estado para o efeito promulgue (em Situação Jurídica das Misericórdias portuguesas, pág. 31).”
5. Pergunta-se se o artigo 23º do estatuto das IPSS se aplica às Misericórdias.
5.1. As IPSS são pessoas colectivas de utilidade pública (isto é, associações ou fundações de direito privado que prosseguem fins não lucrativos de interesse geral, cooperando com a Administração central ou local, em termos de merecerem da parte desta a declaração de “utilidade pública”, de acordo com o nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro), que se constituem para dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos - nomeadamente para fins de apoio a crianças e jovens, apoio à família, integração social e comunitária, protecção na velhice e na invalidez, promoção da saúde, educação, formação profissional e habitação social (artigo 1º do Estatuto).
5.2. Citando Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, 2ª edição, vol. I, fls. 553):
“... um diploma de 1979 - o Decreto-Lei nº 519 - G2/79, de 29 de Dezembro - destacou do conceito de pessoas colecticas de utilidade pública administrativa toda uma espécie de associações e fundações particulares, que denominou de instituições privadas de solidariedade social e que tinham por objecto facultar serviços ou prestações de segurança social. Posteriormente, o Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro, reviu e ampliou aquele diploma e consagrou o estatuto jurídico das ora designadas instituições particulares de solidariedade social, que já se não confinam ao sector da segurança social, abarcando também certas iniciativas particulares em áreas como a saúde, a educação, a formação profissional e a habitação. Estas instituições - formalmente referidas na própria Constituição (artigo 63º, nº 3) - deixaram, por lei, de ser qualificáveis como pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (Decreto-Lei nº 119/83, artigo 94º).
........................................................................
...as Misericórdias eram anteriormente pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (C.A., artigos 433º e segs.), mas, tendo sido abrangidas no novo conceito de instituições particulares de solidariedade social, deixaram de pertencer àquela categoria e ingressaram nesta última (Decreto-Lei nº 119/83, artigos 68º e segs.)” Regime jurídico das pessoas colecticas de utilidade pública, em geral
6. É “um regime de carácter misto: por um lado, tais entidades beneficiam de certos privilégios, de que não gozam em geral as pessoas colectivas privadas - e isto porque se dedicam à prossecução de interesses gerais -; por outro lado, ficam sujeitas a deveres e encargos especiais, a que também não estão submetidas em geral as pessoas colectivas privadas - o que se justifica igualmente pelo facto de se tratar de entidades que prosseguem fins que directamente interessam à Administração como zeladora do bem comum.” (Freitas do Amaral, obra citada, fls 573).
Beneficiam do apoio financeiro do estado, e estão sujeitas a tutela administrativa.
Das IPSS
6.1. “Pelo que toca às instituições particulares de solidariedade social, o seu regime - para além do resultante do Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro - é o que resulta do Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro. Deste último diploma constam, em especial, o princípio da autonomia institucional (artigo 3º), o princípio do apoio do Estado e das autarquias locais (artigo 4º), os direitos dos beneficiários (artigo 5º), as regras sobre criação, organização, gestão e extinção (artigos 9º a 31º), e as normas sobre tutela administrativa (artigos 32º a 39º). Há uma secção especial que regula as Misericórdias (artigos 68º a 71º) ...” (idem, fls 572).
7. Como acima se referiu, o artigo 32º do Estatuto sujeitava a autorização os actos de alienação de imóveis. Isto porque, como diz Freitas do Amaral (obra citada, fls 570).
“Sempre se entendeu, na verdade, que sendo instituições que reúnem avultados patrimónios, normalmente por dádiva generosa de particulares, é necessário fiscalizá-las para que não haja dissipação de bens, e para que as pessoas encarregadas de geri-las não administrem os patrimónios no seu interesse pessoal, mas no interesse geral que presidiu à afectação desses bens aos respectivos fins ...”
7.1. No Decreto-Lei nº 89/85, de 1 de Abril, que o revogou dizia-se que se teve em conta que “a prática tem demonstrado que a referida disposição não tem tido a eficácia prevista e que, por outro lado, cerceia de algum modo a natureza privada das instituições, que importa, acima de tudo, salvaguardar”
7.2. Isto é, reconheceu-se a necessidade de salvaguardar a natureza privada das instituições ...
8. É verdade que o artigo 23º estava estreitamente relacionado com o artigo 32º. Artigo que exigia a autorização dos serviços competentes, no âmbito da tutela administrativa. Do “preço” a que se refere o artigo 23º dependeria a concessão da autorização ...
O certo é que, revogado o artigo 32º, o artigo 23º não o foi. Continua, pois, em vigor ...
9. Daí nos pareça se impõe concluir que, como as restantes disposições do Estatuto, a disposição do artigo 23º se aplica às irmandades da Misericórdia.
10. Aplicar-se-á nos termos do nº 3 do artigo 69º. Que exclui do âmbito de aplicação do “Estatuto” tudo o que especificamente respeita ás actividades estranhas aos fins de solidariedade social.
10.1. Ora, de acordo com o nº 1 do artigo 68º, “As irmandades da Misericórdia ou santas casas da Misericórdia são associações constituídas na ordem jurídica canónica com o objectivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios de doutrina e moral cristãs”
10.2. Isto é, excepcionado estará quanto especificamente respeita à prática de actos de culto ...
11. Uma vez que, de acordo com o artigo 44º “a aplicação das disposições do estatuto às instituições da igreja católica é feita com respeito das disposições da Concordata”; uma vez que, de acordo com o artigo IV da Concordata, “se além de fins religiosos as associações ... se propuseram também fins de assistência e de beneficência ... ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente...” uma vez que, de acordo com o artigo 48º do Estatuto, “sem prejuízo da tutela do estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano ... a orientação das instituições do âmbito da sua diocese”, uma vez que, saliente-se uma vez mais, deixou de exigir-se a intervenção dos serviços da tutela para actos de alienação.
não caberá ao Ordinário apreciar se o acto a praticar especificamente respeita a actividades estranhas aos fins de solidariedade social, e como tal se trata de matéra excepcionada pelo nº 3 do artigo 69º?
Parece-nos que sim.
Tanto mais que, como se diz na certidão emitida pelo Chanceler da Cúria Diocesana de ..., a Santa Casa da Misericórdia foi autorizada a vender à Fábrica da Igreja Paroquial ...
Assim sendo,
Parece-nos que o artigo 23º do estatuto está em vigor.
Parece-nos que se aplica às Misericórdias, nos termos em que lhes é aplicável quanto no Estatuto se dispõe.
Isto é, em tudo quanto não respeite especificamente às actividades estranhas aos fins de solidariedade social.
Parece-nos que ao ordinário diocesano - a quem cumpre observar não só direito canónico, mas também as disposições aplicáveis do direito português - incumbe apreciar a natureza e fim das actividades em causa.
Ou seja, parece-nos que, apresentado documento comprovativo de que a venda foi autorizada pelo ordinário, não deverá o notário recusar a realização da escritura.
Conclusões
I - O artigo 23º do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social está em vigor e aplica-se às Misericórdias, nos termos do disposto no artigo 69º. Isto é, exceptuando quanto respeite especificamente às actividades estranhas aos fins de solidariedade social.
II - Ao ordinário diocesano - a quem cumpre observar não só o direito canónico, mas também as
disposições aplicáveis do direito português - incumbe apreciar a natureza e fim das actividades em causa (artigos 44º e 48º do Estatuto e artigo IV da Concordata).
III - Apresentado documento comprova-tivo de que a venda foi autorizada pelo ordinário, não deverá o notário recusar a realização da escritura por não se fazer prova de ter sido observado o disposto no artigo 23º.
Sobre este parecer recaiu despacho de concordância do subdirector-geral de 14.11.95.

Caderno 1 - Instituto Nacional dos Registos e do Notariado - DEZ1997

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Irmandades das Misericordias

Processo: 072890

Nº Convencional: JSTJ00001242
Relator: GOIS PINHEIRO
Descritores: INSTITUIÇÃO PRIVADA DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
MISERICORDIAS
CONTAS
TRIBUNAL COMPETENTE

Nº do Documento: SJ198507110728902
Data do Acordão: 11-07-1985
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N349 ANO1985 PAG432
Texto Integral: N
Privacidade: 1

Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL. DIR CANON.
Legislação Nacional: CDCANON CANON298 CANON299 CANON305.
DL 119/83 DE 1983/02/25 ART2 N1 E ART48 ART49 ART69 N1 N2 N3 ART98 B.
DL 519-G2/79 DE 1979/12/29.
CONC DE 1940/05/07 ART3.

Sumário : I - Por força da Concordata celebrada entre Portugal e a Santa
Se, em 7 de Maio de 1940, a Igreja Catolica pode organizar-se livremente, de harmonia com as normas do direito canonico, e constituir por essa forma associações, corporações ou institutos religiosos, canonicamente erectos, a que o Estado portugues reconhece personalidade juridica.
II - As irmandades das Misericordias constituem associações da Igreja Catolica, no expresso reconhecimento do artigo 49 do Estatuto das instituições particulares de solidariedade social, aprovado pelo Decreto-Lei n. 119/83, de 25 de Fevereiro.
III - As instituições da Igreja Catolica estão submetidas a tutela da autoridade eclesiastica que, no tocante as de ambito diocesano, e o competente Ordinario, o qual as orienta, aprova os seus corpos gerentes e os relatorios e contas anuais respectivos (artigo 48 do referido Estatuto).
IV - Competindo ao Ordinario diocesano, por força do normativo legal, a aprovação dos corpos gerentes das Misericordias, caber-lhe-a tambem, por necessaria inerencia, verificar a regularidade da eleição.
V - São, assim, incompetentes os tribunais comuns para apreciar as irregularidades alegadamente verificadas na eleição dos corpos gerentes de uma Misericordia.

Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior

Extracto do Compromisso aprovado após 2007
Artigo 1.º
1.- A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia da Leal e Valorosa Vila de Campo Maior, ..., fundada na 1.ª década do século XVI, é uma associação pública de fiéis, constituída na ordem jurídica canónica, ....
Artigo 3.º
3.- De acordo com as "Normas Gerais das Associações de Fiéis" poderá constituir associações, uniões, federações e confederações com outras Santas Casas da Misericórdia, instituições do sector de economia social, entidades do sector público e organizações do sector privado ....
Artigo 15.º
3.- Após homologação da autoridade eclesiástica, o mandato inicia-se com a tomada de posse perante o presidente da Mesa da Assembleia de Irmão cessante ou seu substituto ....

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Santa Casa da Misericórdia de Benavente

Processo: 05B116

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: MISERICÓRDIAS
ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA
SÓCIO
ADMISSÃO
ORGÃO SOCIAL
ELEIÇÃO
SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
COMPETÊNCIA CONTENCIOSA

Nº do Documento: SJ200502170001162
Data do Acordão: 17-02-2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7046/04
Data: 14-10-2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.

Sumário : I. O acto da Mesa Administrativa de uma Misericórdia relativo à admissão, filiação ou adesão de novos irmãos como membros efectivos da Irmandade respeita exclusivamente à vida interna ou inter-orgânica da instituição em causa, cuja fiscalização e tutela competem, por isso, ao "Ordinário Diocesano".
II. Não cabe, assim aos tribunais indagar da idoneidade ou da inidoneidade dos candidatos à filiação nesse instituto eclesial, e muito menos sindicar a "legalidade", ou sequer a oportunidade ou a conveniência, do acto de apreciação (positiva ou negativa) dessas candidaturas ou pedidos de filiação/admissão.


III. E daí a incompetência dos tribunais comuns "ratione materiae" para a sindicância da questionada legalidade e, consequentemente, para a apreciação de providência cautelar de suspensão da decisão da mesa administrativa - órgão executivo da Misericórdia - sobre a admissão de novos irmãos.


Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" e B requereram contra a Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, com data de 10-5-04, providência cautelar solicitando que a deliberação da Mesa Administrativa de 13 de Abril de 2004, que aprovou a entrada de 58 novos "irmãos", fosse suspensa até decisão final proferida na acção ordinária em que se discutia a validade da deliberação da Mesa Administrativa de 16 de Outubro de 2004. (ou 2003).

Alegaram, em suma, que um grupo de "irmãos" intentou procedimento cautelar e a respectiva acção principal, pondo em causa as deliberações de 16 de Outubro de 2003, que admitiu 16 novos elementos, e de 21 de Outubro de 2003, que teve em vista a eleição dos seus corpos gerentes, por serem ilegais, e por isso anuláveis.

A acção principal e providência cautelar encontram-se em fase de recurso, além de que existem ainda dois processos-crime a correr termos, pelo que a Mesa em funções deveria apenas exercer actos de gestão corrente, nos quais não se enquadra a deliberação aqui posta em causa ao aprovar a entrada de 58 "irmãos".

2. O Mmo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Benavente, por despacho datado de 12-5-04 (fs. 23), julgou o tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo, em consequência, a requerida da instância, por considerar a matéria em apreço do foro exclusivo do Ordinário Diocesano que não dos tribunais comuns.

3. Inconformados, agravaram os requerentes, mas o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 14-10-04, negou provimento ao recurso.

4. De novo irresignados, desta feita com tal aresto, dele vieram os requerentes agravar para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:

1ª- O Tribunal "a quo" não especificou, como devia, os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão, ou seja, em relação aos factos subjacentes ao pedido formulado, não os separou, diferenciou ou especificou, a fim de se poderem distinguir e sobre eles assentar o regime jurídico adequado, em suma, não apreciou a competência para conhecer de todas as questões levantadas pelos recorrentes;

2ª- Mais do que ausência absoluta de decisão quanto a questões alegadas pelos recorrentes e que, a serem apreciadas, conduziriam a decisão diferente;

3ª- Por outro lado, o Tribunal "a quo" decidiu mal ao declarar-se absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer das irregularidades respeitantes à admissão dos 58 novos Irmãos pela Mesa Administrativa, com o fundamento de que se trata de matéria da exclusiva competência do Ordinário Diocesano, conforme dispõem os artigos 48° e 49° do DL n° 119/83, de 25/02;

4ª- As instituições com objectivos marcadamente sociais embora, também, de cariz religioso, como é o caso da recorrida, a Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, não deverão ser tuteladas pelo Ordinário Diocesano, visto que esta tutela não contempla o poder de verificação e de anulação de actos irregulares e / ou ilegais, o qual é próprio dos tribunais, no caso em apreço, dos tribunais comuns por força das regras gerais sobre a competência material dos tribunais;

5ª- Em suma, a Mma Juíza, ao ter decidido da forma que decidiu, violou, entre outros, o disposto no artigo 668°, n° 1, als. b) e d) e ainda o disposto nos artigos 7° do DL 519-G2/79, de 29/12, 98°, al. d), do DL 119/83, de 25/02 e 66° e 67° do Código de Processo Civil;

5. Contra-alegou a recorrida sustentando a correcção do julgado, formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:
1ª- Delimitando os recorrentes, nas conclusões, o objecto do recurso ao despacho de 1ª instância, e não sendo possível, in caso, o recuso da decisão da 1ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça, são ineptas as alegações oferecidas, pelo que devem as mesmas serem liminarmente indeferidas;

2ª- A questão prévia arguida pelos recorrentes é alheia à matéria do recuso, e como tal não deverá ser conhecida no douto acórdão que sobre o mesmo recair, acrescendo que, ao contrário do que estes alegam, a tomada de posse dos novos corpos gerentes da recorrida não violou qualquer comando judicial;

3ª- Não é impugnável uma deliberação de um órgão executivo de uma pessoa colectiva através de acção directa para os tribunais judiciais sem que, previamente, ela seja feita para a Assembleia Geral, nos termos do art. 412 do Código das Sociedades Comerciais, pelo que a utilização do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais pelos recorrentes, para suspender uma deliberação da Mesa Administrativa da recorrida, deverá levar à improcedência do pedido;

4ª- Como bem refere o douto acórdão recorrido, o Tribunal de 1ª instância, ao declara-se incompetente para conhecer do pedido de suspensão da deliberação da Mesa Administrativa, em razão da matéria, não tinha de se pronunciar sobre os fundamentos daquele pedido, não havendo, por este motivo, omissão de pronúncia nem por parte da 1ª instância, nem por parte da decisão da Relação de Lisboa, a qual igualmente não se pronunciou sobre os fundamentos aduzidos pelos recorrentes em tudo o que foi para além da discussão sobre a competência do tribunal;

5ª- Como bem decidiu o douto acórdão recorrido, os tribunais judiciais são incompetentes, em razão da matéria - artigos 18°, n°1, da L 3/99, de 13/1 e do 66° do CPC - para conhecer do objecto do presente recurso, o que acarreta a absolvição da requerida da instância - artigos 105°, n° 1 e 288°, n° 1, alínea a), do C.P.C.;

Assim, o douto acórdão recorrido, ao confirmar a decisão da 1ª instância, não violou as normas indicadas nas alegações dos requerentes.

6. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar.

7. Alegadas nulidades do acórdão por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e por omissão de pronúncia - arts. 668 nº 1 alíneas b) e d) e 660, nº 2 do CPC.
Nas conclusões 1ª e 2ª da respectiva alegação, vieram os recorrentes arguir a nulidade da decisão:

- por um lado, porque o tribunal "a quo" não terá especificado, como devia, os fundamentos de facto e de direito que justificaram a sua decisão, ou seja, em relação aos factos subjacentes ao pedido formulado, não os separou, diferenciou ou especificou, a fim de se poderem distinguir e sobre eles assentar o regime jurídico adequado, em suma, não apreciou a competência para conhecer de todas as questões levantadas pelos recorrentes;
- por outro, face à ausência absoluta de decisão quanto a questões alegadas pelos recorrentes as quais, a serem apreciadas, conduziriam a decisão diferente.
Os agravantes não chegaram, porém, a esclarecer se tais vícios são de imputar à decisão de 1ª instância - caso em que o acórdão recorrido teria supostamente incorrido em erro de julgamento, que não em causa invalidante desse aresto - ou se ao próprio acórdão da Relação.
Pelo respectivo texto, essas conclusões parecem apontar para a decisão de 1ª instância, mas então jamais poderiam ser - insiste-se - invalidantes do acórdão recorrido.

E, de qualquer modo, o acórdão em causa não enferma de qualquer das sugeridas nulidades.
Quanto à primeira - ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - constituem doutrina e a jurisprudência concordantes as de que só uma ausência absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação escassa, deficiente, ou mesmo medíocre, pode ser geradora da nulidade das decisões judiciais - conf., por todos o Prof. Alberto dos Reis, in " Código de Processo Civil Anotado, vol V, págs 139-140 e, entre outros, o Ac do STJ de 13-1-05, in Proc 3368/04 - 2ª Sec.
Ora, basta a simples compulsação do teor do acórdão sob apreciação para logo se alcançar o itinerário cognoscitivo e valorativo quanto à aplicação do direito seguido pelos julgadores na emissão do seu juízo jurídico-processual.

A recorrente pode discordar - como realmente discorda - do sentido decisório a final emitido, mas o que não pode é invocar quanto à mesma a violação do dever da respectiva fundamentação suficiente e congruente, que a mesma claramente externa e evidencia.

E, quanto à aventada nulidade por omissão de pronúncia, encontra-se esta espécie de nulidade por aventada «omissão de pronúncia» (artº 668º nº 1, al d), do CPC) directamente relacionada com o postulado no nº 2 do artigo 660º do mesmo diploma - dever o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.

Mas este último inciso normativo logo exceptua, também "expressis verbis", aquelas questões "cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras".
Sucede, todavia, que o tribunal se pronunciou sobre a única «questão» que, na oportunidade deveria ter apreciado prioritariamente relativamente mesmo à questão da recorribilidade do acto em apreço: a questão (de ordem pública) da competência do tribunal; tudo o mais constituía mera retórica argumentativa com vista ao reconhecimento do seu direito à invalidação do acto impugnado - fora, pois, do âmbito do agravo porquanto este circunscrito à questão da competência "ratione materiae".

E uma vez decidida tal questão prejudicada ficou, logicamente, a apreciação, sequer perfunctória, quer dos requisitos da procedência da requerida providência, quer da aventada ilegalidade do acto (deliberação) impugnado.
Improcede, pois, a arguição de nulidades do acórdão.

8. Pressuposto processual da competência do tribunal.
Encontra-se em causa a questão da determinação do tribunal competente para apreciação da legalidade da deliberação de 13-4-04 dimanada da entidade requerida e que aprovou a entrada de 58 novos Irmãos.

Seguiram as instâncias na peugada do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-7-1985, in BMJ nº 349, pág. 432, no qual se entendeu que as Irmandades das Misericórdias constituem associações da Igreja Católica, encontrando-se "qua tale" submetidas à tutela da autoridade eclesiástica,.

E daí a incompetência dos tribunais comuns "ratione materiae" para a sindicância da questionada legalidade e, consequentemente, para a apreciação da providência cautelar a que se reportam os autos.

No Ac. desta 2ª Secção de 4-10-00, in Proc 234/00, não se encontrava em causa um acto de admissão de novos irmãos.
Insistem, entretanto, os agravantes em que a referida exclusividade não se estende às associações católicas que sejam também equiparadas a instituições de solidariedade social, como é o caso da Santa Casa da Misericórdia de Benavente, na medida em que a tutela canónica não contempla o poder de verificação e anulação de actos irregulares ou ilegais, mas que apenas se confina à vigilância do bom cumprimento dos princípios que as regem.

Regem, "prima facie", neste específico âmbito, quer o Código de Direito Canónico - nos termos do qual a Santa Casa da Misericórdia é uma associação destinada a promover a realização de actos de culto católico e dar satisfação a carências sociais (cfr. art. 10º), carecendo os seus estatutos da aprovação pela autoridade competente da Igreja e sujeitos à vigilância da autoridade eclesiástica (cfr. cânone 305, §§ 1° e 2° ) - quer os Estatutos próprios daquela concreta entidade.

Segundo o n° 1 do artº 1 ° do respectivo "Compromisso" (Estatutos) inserto por fotocópia de fs. 92 e ss., a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Benavente é uma associação de fiéis, fundada em 1232, constituída da Ordem Jurídica Canónica para satisfação de carências sociais e para a realização de actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e da moral cristãs.

No n° 3 desse preceito estatutário estabelece-se que a aquisição da personalidade jurídica civil da Irmandade, bem como o seu reconhecimento como instituição privada de solidariedade social, são operados mediante participação escrita da sua erecção canónica - feita pelo Ordinário Diocesano aos serviços competentes do Estado - acrescentando o n° 4 do artº 1 ° que, em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano, de modo similar ao das demais associações de fiéis.

No que tange à administração das Misericórdias, o art. 26°, n° 1, do "Compromisso", estipula que os corpos gerentes da Irmandade são a assembleia geral, a mesa administrativa e o definitório ou conselho fiscal, sendo os corpos gerentes eleitos por períodos de três anos civis (cfr. art. 26°, n.° 2), nas condições e termos estabelecidos nos artigos 53° a 56° do mesmo "Compromisso".

A Mesa Administrativa - órgão executivo - é constituída por cinco membros efectivos e três suplentes (art. 38°) sendo apenas válidas as deliberações que forem tomadas com a presença da maioria absoluta dos membros em exercício (art. 42°).

A admissão dos "Irmãos", é feita mediante proposta assinada por dois "Irmãos" estranhos à Mesa Administrativa e pelo próprio candidato, proposta essa que é submetida à apreciação da Mesa Administrativa (cfr. art. 8° do Compromisso).

As associações assim constituídas, de harmonia com o artº 4° da Concordata de 1940 - então em vigor - "... podem adquirir bens e dispor deles nos mesmo termos por que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica...", e se estas associações, para além dos fins religiosos, "... se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários..., ficam, na parte respectiva, também sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tomará efectivo através do Ordinário competente, e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza".

Tais associações encontram-se sujeitas à vigilância e à dependência da autoridade eclesiástica, nos termos dos cânones 305º e 323º do CDC.

É certo que, conforme decorre do disposto no artº 40° do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo DL 119/83 de 25/2, as organizações e instituições religiosas que, para além dos fins religiosos também desenvolverem actividades enquadráveis no âmbito das prosseguidas pelas pessoas colectivas de solidariedade social, estão, quanto a tais actividades, sujeitas ao regime previsto no referido Estatuto. Mas, tal como dispõe o artº 48° do mesmo Estatuto, "sem prejuízo da tutela do Estado, "compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais".

Por sua vez, o artº 69° ainda desse mesmo Estatuto das IPSS, que se reporta ao regime jurídico aplicável, dispõe que às irmandades da Misericórdia "aplica-se directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes são próprias", ressalvando-se, porém, - e este é o critério decisivo - tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social " (n°s 1 e 3 da citada norma).

O n° 2 do mesmo preceito legal estabelece que em tudo quanto na secção 2ª do capítulo 3° do mencionado diploma (que versa sobre as irmandades) não se encontre especialmente estabelecido, essas irmandades regular-se-ão pelas disposições aplicáveis às associações de solidariedade social.

Temos, pois, que os institutos e associações que tenham por fim o exercício da actividade especificamente religiosa são estranhos aos fins próprios da administração pública, mas se prosseguirem fins de beneficência ou de assistência, já ficarão sujeitas, nessa parte - mas apenas nessa parte - ao ordenamento jurídico geral instituído pelo Estado para as instituições particulares da mesma índole, sem prejuízo da disciplina e espírito religiosos.

Assim, como refere no sobredito Ac. do STJ de 10-7-85 - que vimos seguindo de perto - sem prejuízo da tutela do Estado, que se manifesta, além de outros modos, através da sua intervenção nos actos discriminados no artº 32° e ss. do Estatuto (aquisição e alienação de bens, empréstimos, realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções, destituição dos gerentes por actos reiterados de gestão prejudicial, requisição de bens para utilização em fins idênticos, etc.), as instituições da Igreja Católica - assim se acolhendo as prescrições do Código de Direito Canónico - estão submetidas à tutela da autoridade eclesiástica que, no tocante às que tenham âmbito diocesano, é exercida pelo competente Ordinário, o qual as orienta, aprova os seus corpos gerentes e os relatórios e contas anuais (artigo 48°)".

Ainda na esteira do mesmo aresto, "... se ao Ordinário diocesano cabe, por força da lei a aprovação dos corpos gerentes das Misericórdias, caber-lhe-á também, por necessária inerência, verificar a regularidade da eleição, sob pena de ter de aceitar-se que a sua aprovação haveria de resumir-se à aposição de uma chancela sem qualquer sentido prático e efeito útil' (sic).

Assim, as (pretensas) irregularidades imputadas nos presentes autos à autoria da Mesa na "admissão de novos irmãos" não se situam num domínio em que se imponha o exercício de uma qualquer tutela (pública) do Estado, nem respeitam especifica e directamente à prestação dos fins assistenciais ou de solidariedade social da instituição, como bem se salienta no acórdão recorrido.

Encontra-se em causa, tão-somente, a vida interna ou inter-orgânica da irmandade em causa (relativa à filiação ou adesão de novos irmãos como seus membros efectivos) cuja fiscalização e tutela competem, por força do citado artº 48°, ao "Ordinário Diocesano".

Não cabe aos tribunais indagar da idoneidade ou da inidoneidade dos candidatos à filiação numa dado instituto eclesial (como é o caso de uma Misericórdia), e muito menos sindicar a "legalidade", ou sequer a oportunidade ou a conveniência, do acto de apreciação (positiva ou negativa) dessas candidaturas ou pedidos de filiação/admissão.

Torna-se, aliás, manifesto não subjazer aqui qualquer questão determinante da aplicação do disposto no artigo 7° do DL 519-G2/79, de 29/12, (o qual, mercê da ressalva constante do 98°, alínea b), do Estatuto aprovado pelo DL 119/83, se mantém em vigor), situação que reclamaria, ela sim, a intervenção dos tribunais (estaduais) para a respectiva sindicância.

9. Bem concluíram, por isso, as instâncias pela incompetência material dos tribunais comuns de jurisdição ordinária nos termos dos artigos 18°, n° 1, da L n° 3/99, de 13/1 e do artigo 66° do CPC, para conhecer do objecto da subjacente providência cautelar, pelo que bem absolvida foi da instância a entidade requerida e ora agravada, "ex-vi" do disposto nos artigos 105°, n° 1 e 288°, n° 1, alínea a), do CPC.

10. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar provimento ao agravo;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2005
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Santa Casa da Misericórdia do Gavião

743/08.0TBABT-A.E1.S1

Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO

Descritores: COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
TRIBUNAL ECLESIÁSTICO
ORDEM DE BOLSA
ORDEM JURÍDICA CANÓNICA
CONCAUSALIDADE
CONCORDATA DE 2004
INSTITUTO DE SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA SOCIAL
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DA IGREJA E DO ESTADO

Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 17-12-2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA

Sumário :

1.Face ao preceituado nos arts. 10,11 e 12 da Concordata de 2004, não se situa no âmbito da jurisdição dos tribunais portugueses a dirimição de litígios situados na vida interna de pessoas jurídicas canónicas, regidos pelo Direito Canónico, aplicado pelos órgãos e autoridades do foro canónico que exerçam uma função de vigilância e fiscalização sobe as mesmas .

2. Os tribunais portugueses apenas são competentes para a aplicação dos regimes jurídicos instituídos pelo direito português - nomeadamente no DL119/83, que institui o regime das Instituições Particulares e Solidariedade Social – quanto às actividades de assistência e solidariedade, exercidas complementarmente pelas pessoas jurídicas canónicas .

3.Está excluída – desde logo, como decorrência do princípio constitucional da separação da Igreja e do Estado - a possibilidade de outorgar a um tribunal ou entidade pública o poder de sindicar um concreto acto ou decisão da competente autoridade eclesiástica no exercício da sua tarefa de vigilância e fiscalização sobre a vida interna de associações constituídas sob a égide do Direito Canónico – no caso, a recusa de homologação do resultado eleitoral para os corpos gerentes de uma Misericórdia, estatutariamente imposta como condição para a investidura - não podendo , por força do referido princípio constitucional, existir zonas de interferência, sobreposição ou colisão entre as competências atribuídas aos órgãos estaduais e as conferidas às autoridades eclesiásticas.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.A Santa Casa da Misericórdia de Gavião intentou contra AA, na qualidade de presidente da mesa da assembleia geral daquela instituição, procedimento cautelar comum, requerendo a intimação judicial da requerida para, no prazo judicialmente fixado, dar posse aos novos corpos eleitos para a direcção daquela instituição, em acto eleitoral não homologado pelo Ordinário Diocesano, fundando-se no direito a ver empossados nas suas funções os membros da lista vencedora e invocando prejuízos decorrentes no atraso da investidura dos corpos sociais eleitos, a acautelar através da medida cautelar requerida.
Deduzida oposição e dirimido o incidente de verificação do valor da causa, foi proferida decisão a indeferir a providência requerida.
Inconformada, a requerente apelou para a Relação de Évora que –revogando a decisão que, na 1ª instância, decretara a improcedência da providência cautelar peticionada – declarou o tribunal comum materialmente incompetente para a causa, considerando que a mesma se situa no âmbito da competência das autoridades eclesiásticas .

2.É desta decisão que vem interposto o presente recurso de revista – importando salientar que ao mesmo é aplicável o novo regime de recursos, aprovado pelo DL 303/07, uma vez que se trata de causa iniciada em Junho de 2008: daqui decorre a qualificação do recurso como «revista», como consequência do desaparecimento da figura do agravo, a vinculação do recorrente ao ónus de alegação conjuntamente com a interposição do recurso, em prazo alargado ( que se mostra cumprido) e a aplicação dos novos valores das alçadas (tendo sido atribuído a esta causa precisamente o valor de €30.000,01 –fls. 522).
Por outro lado, o excepcional acesso ao STJ – já que está em causa decisão proferida num procedimento cautelar – encontra fundamento no preceituado no art. 387º-A do CPC, conjugado com o disposto no art.678º,nº2, al. a), primeira parte, enquanto prescreve que é sempre admissível recurso das decisões que violem as regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.

Saliente-se que, no caso ora em apreciação, não está apenas em causa um problema de definição da competência em razão da matéria dos tribunais comuns, envolvendo antes uma questão de delimitação do âmbito da jurisdição exercida pelo conjunto dos tribunais portugueses no confronto dos tribunais e autoridades eclesiásticas, decorrente, nomeadamente, da reserva de jurisdição que é feita a seu favor pela Concordata.

3.A entidade recorrente encerra a sua alegação com as seguintes conclusões que - como é sabido – delimitam o objecto do recurso interposto:

1) As pessoas colectivas de direito canónico, como a Recorrente, que se proponham fins de assistência e beneficência, regem-se por duas ordens jurídicas distintas, a saber: na esfera da actividade espiritual, pelo direito canónico; e na esfera temporal, como pessoa colectiva de solidariedade social, pelo direito nacional;
2) Nos presentes autos está em causa o contencioso eleitoral das Misericórdias, sendo que este fica excluído da apreciação do Ordinário Diocesano por força do preceituado no Estatuto das IPSS (Dec.-Lei n.° 119/83),
3) são competentes os tribunais comuns para apreciar a legalidade ou ilegalidade do processo eleitoral;
4) a eleição de corpos gerentes não se trata de uma questão meramente de ordem interna da Irmandade, dizendo respeito ao interesse público, cabendo a sindicância aos Tribunais, enquanto órgãos de soberania do Estado,
5) A declaração de incompetência dos tribunais comuns é inconstitucional por impedir a tutela jurisdicional efectiva, por violação do artigo 20.° da CRP.
NESTES TERMOS.
E nos melhores de Direito, dado que seja por V.Exas. - Venerandos Conselheiros - o V. douto suprimento, deve ao presente recurso ser dado provimento porque devido, declarando-se competentes os tribunais comuns, revogando-se o douto Acórdão proferido pela Relação de Évora e ordenando-se o conhecimento das demais questões suscitadas em Apelação, com o que se fará a desejada JUSTIÇA.
A Recorrente encontra-se isenta de custas judiciais, cfr. artigo 2.°, n.° 1 al. c) do Código das custas Judiciais.

Não foram apresentadas contra-alegações.

4. As instâncias consideraram provada a seguinte matéria de facto:

1 - Em 8 de Dezembro de 2007, pelas 15 horas, teve lugar no Salão das Sessões da Santa Casa da Misericórdia, a Sessão Ordinária da Assembleia Geral, sendo ponto da ordem de trabalhos a eleição dos corpos gerentes para o triénio 2008/2010.
2 - Estiveram duas listas (A e B) sujeitas a sufrágio e o resultado eleitoral deu a vitória à Lista A, com 183 votos, ficando vencida a Lista B, com 51 votos.
3 - Os resultados eleitorais foram comunicados ao Ordinário Diocesano em 13 de Dezembro de 2007. '
4 -No dia 6 de Fevereiro de 2008, deu entrada nos serviços administrativos da requerente um requerimento subscrito pela Irmã BB, pedindo a emissão de lista completa de todos os Irmãos da Stª Casa, onde conste a data da sua admissão, bem como a data do último pagamento de quota - cfr. instrumento de fs. 64, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
5 - A requerente não concedeu a informação solicitada.
6 - Em 18 de Março de 2008, o Delegado Diocesano para as Irmandades das Misericórdias dirigiu à Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Sf Casa da Misericórdia de Gavião uma missiva a dar conta da decisão de não aprovar e não homologar os corpos gerentes eleitos em 8 de Dezembro de 2007 - cfr. instrumento de fls. 60 e 61, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.
7 - Para cabal esclarecimento da situação, a requerente solicitou, em 24 de Março de 2008, a fundamentação da decisão proferida e a prestação de esclarecimentos acerca do teor daquela missiva - cfr. instrumento de fls. 73 e 75, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.
8-O Ordinário Diocesano ainda não homologou o acto eleitoral e a Mesa da Assembleia Geral da St3 Casa da Misericórdia de Gavião ainda não empossou em funções a lista vencedora.
9 - Os corpos gerentes da requerente, eleitos para o triénio 2006/2008, mantêm-se em funções.

10 - O Presidente da Mesa da Assembleia Geral da requerente, CC , faleceu no dia 4 de Abril de 2007.
11 - A Vice-Presidente DD apresentou pedido de demissão no dia 6 de Junho de 2008.
12 - A requerida apresentou pedido de demissão do cargo de Ia Secretária no dia 17 de Julho de 2008.

5.Como dá nota o acórdão recorrido, constitui orientação reiterada do STJ a que se traduz em afirmar que os tribunais portugueses carecem de competência para dirimir os litígios decorrentes do processo eleitoral das pessoas colectivas canónicas, nomeadamente as Misericórdias, por se tratar de matéria situada no âmbito do foro eclesiástico: vejam-se, nomeadamente os acs. de 26/4/07, in CJ II/97, pag.48, de 27/1/05, proferido no p.04B4525, de 17/2/05, proferido no p.05B116, onde se afirma:

As associações assim constituídas, de harmonia com o artº 4° da Concordata de 1940 - então em vigor - "... podem adquirir bens e dispor deles nos mesmo termos por que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica...", e se estas associações, para além dos fins religiosos, "... se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários..., ficam, na parte respectiva, também sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tomará efectivo através do Ordinário competente, e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza".

Tais associações encontram-se sujeitas à vigilância e à dependência da autoridade eclesiástica, nos termos dos cânones 305º e 323º do CDC.

É certo que, conforme decorre do disposto no artº 40° do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo DL 119/83 de 25/2, as organizações e instituições religiosas que, para além dos fins religiosos também desenvolverem actividades enquadráveis no âmbito das prosseguidas pelas pessoas colectivas de solidariedade social, estão, quanto a tais actividades, sujeitas ao regime previsto no referido Estatuto. Mas, tal como dispõe o artº 48° do mesmo Estatuto, "sem prejuízo da tutela do Estado, "compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais".

Por sua vez, o artº 69° ainda desse mesmo Estatuto das IPSS, que se reporta ao regime jurídico aplicável, dispõe que às irmandades da Misericórdia "aplica-se directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes são próprias", ressalvando-se, porém, - e este é o critério decisivo - tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social " (n°s 1 e 3 da citada norma).

O n° 2 do mesmo preceito legal estabelece que em tudo quanto na secção 2ª do capítulo 3° do mencionado diploma (que versa sobre as irmandades) não se encontre especialmente estabelecido, essas irmandades regular-se-ão pelas disposições aplicáveis às associações de solidariedade social.

Temos, pois, que os institutos e associações que tenham por fim o exercício da actividade especificamente religiosa são estranhos aos fins próprios da administração pública, mas se prosseguirem fins de beneficência ou de assistência, já ficarão sujeitas, nessa parte - mas apenas nessa parte - ao ordenamento jurídico geral instituído pelo Estado para as instituições particulares da mesma índole, sem prejuízo da disciplina e espírito religiosos.

Assim, como refere no sobredito Ac. do STJ de 10-7-85 - que vimos seguindo de perto - sem prejuízo da tutela do Estado, que se manifesta, além de outros modos, através da sua intervenção nos actos discriminados no artº 32° e ss. do Estatuto (aquisição e alienação de bens, empréstimos, realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções, destituição dos gerentes por actos reiterados de gestão prejudicial, requisição de bens para utilização em fins idênticos, etc.), as instituições da Igreja Católica - assim se acolhendo as prescrições do Código de Direito Canónico - estão submetidas à tutela da autoridade eclesiástica que, no tocante às que tenham âmbito diocesano, é exercida pelo competente Ordinário, o qual as orienta, aprova os seus corpos gerentes e os relatórios e contas anuais (artigo 48°)".

Ainda na esteira do mesmo aresto, "... se ao Ordinário diocesano cabe, por força da lei a aprovação dos corpos gerentes das Misericórdias, caber-lhe-á também, por necessária inerência, verificar a regularidade da eleição, sob pena de ter de aceitar-se que a sua aprovação haveria de resumir-se à aposição de uma chancela sem qualquer sentido prático e efeito útil' (sic).

Assim, as (pretensas) irregularidades imputadas nos presentes autos à autoria da Mesa na "admissão de novos irmãos" não se situam num domínio em que se imponha o exercício de uma qualquer tutela (pública) do Estado, nem respeitam especifica e directamente à prestação dos fins assistenciais ou de solidariedade social da instituição, como bem se salienta no acórdão recorrido.

Encontra-se em causa, tão-somente, a vida interna ou inter-orgânica da irmandade em causa (relativa à filiação ou adesão de novos irmãos como seus membros efectivos) cuja fiscalização e tutela competem, por força do citado artº 48°, ao "Ordinário Diocesano".

Não cabe aos tribunais indagar da idoneidade ou da inidoneidade dos candidatos à filiação numa dado instituto eclesial (como é o caso de uma Misericórdia), e muito menos sindicar a "legalidade", ou sequer a oportunidade ou a conveniência, do acto de apreciação (positiva ou negativa) dessas candidaturas ou pedidos de filiação/admissão.


Aderindo-se inteiramente a este entendimento, bastaria, para decidir o presente recurso, remeter para a fundamentação constante dos acórdãos citados. Considera-se, porém, que a situação dos autos envolve duas particularidades que justificam algum desenvolvimento:
- a primeira delas, prende-se com a circunstância de , perante a localização temporal do presente litígio, já ser convocável o texto da Concordata aprovada em 2004;
- a segunda especificidade conexiona-se com a natureza da pretensão formulada, reportada, não à impugnação de actos inseridos no processo eleitoral, mas antes à «investidura judicial» dos titulares eleitos em acto que a requerente tem por válido, pretendendo-se que o tribunal comum trate de sindicar os fundamentos para a não homologação do resultado eleitoral pela entidade eclesiástica competente, procedendo a uma espécie de«suprimento da recusa»do acto de homologação.

6. Não nos parece que o novo texto Concordatário ponha minimamente em causa o entendimento segundo o qual os aspectos estruturais, internos ou intra-orgânicos de uma «associação pública de fiéis, constituída na ordem jurídica canónica», e tendo como fins e atribuições, não apenas a prática de actividades de solidariedade social, mas também a «realização de actos de culto católico», por essencialmente conexionados com a ordem jurídica canónica, são da jurisdição das autoridades e do foro eclesiástico.
Seria, na verdade, incongruente com a natureza que incontestavelmente assiste à entidade requerente de pessoa colectiva canónica que devesse incumbir aos tribunais ou autoridades estaduais uma intromissão na vida interna de tal associação de fiéis, regida pela ordem jurídica canónica, em tudo aquilo que se não prenda, de modo directo e imediato, com uma actividade de realização de prestações assistenciais : é que, sendo obviamente unitários os órgãos da pessoa colectiva canónica, compete-lhes prosseguir, desde logo e em primeira linha, os fins e atribuições de índole religiosa da entidade em cujo substrato orgânico se inserem – e não apenas as actividades extrínsecas de solidariedade social , em nome das quais – e em homenagem ao interesse público que também lhes subjaz – lhe foi outorgado o estatuto de instituição de solidariedade social.

Como dá nota o atrás citado ac. de 26/4/07, a principal diferença de regimes, nesta sede, situa-se no texto do art.11º da Concordata de 2004, segundo o qual as pessoas jurídicas canónicas, decorrentes do princípio da livre organização da Igreja Católica proclamado pelo art. 10º - e que inteiramente se mantém e reforça - se regem pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades.
Pretendeu-se com esta norma fazer coincidir as regras de jurisdição e competência com as normas de direito material aplicáveis pelo foro eclesiástico e pelos tribunais e autoridades públicas, pondo termo à possibilidade – que efectivamente se verificava anteriormente de:
- os regimes instituídos pelo direito português e aplicáveis às entidades que, para além de fins religiosos , se propunham também fins de assistência ou beneficência, serem «tornados efectivos através do Ordinário competente», por força do estatuído no art.IV da Concordata de 1940;
- poderem eventualmente os tribunais portugueses, por força da articulação das regras de competência internacional com as «normas de conflitos» vigentes, terem de aplicar o Direito Canónico à dirimição de certos e determinados litígios ( cfr, a situação versada no ac. 268/04 do TC).

Continua, porém, a resultar claramente do teor do art. 12º da Concordata de 2004 que as pessoas jurídicas canónicas que , além de fins religiosos, prosseguem fins de assistência e solidariedade desenvolvem a sua actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português: ou seja, a aplicabilidade da ordem jurídica nacional não tem lugar quanto à regulação dos aspectos estruturais, orgânicos ou internos das pessoas colectivas canónicas, mas apenas quanto à disciplina de certas actividades ,extrínsecas e complementares aos fins estritamente religiosos, envolvendo aspectos de índole patrimonial e prestacional que justificam a aplicação do nosso ordenamento jurídico e a sujeição a alguma forma de tutela ou controlo público ( até porque, em muitos casos, o exercício de tal actividade prestacional envolve o recebimento de apoios ou subsídios públicos).

E este entendimento é inteiramente confirmado, no nosso ordenamento jurídico interno, já que o art . 48º do DL.119/83 reafirma o princípio da tutela da autoridade eclesiástica na orientação – e na vida interna - das instituições, envolvendo, nomeadamente, a aprovação dos respectivos corpos gerentes.

7.Como atrás se salientou, o presente procedimento cautelar apresenta especificidade relevante relativamente aos casos de contencioso eleitoral das Misericórdias que frequentemente vêm sendo apreciados e jurisprudencialmente resolvidos: na verdade, o que a A. pretende é, - não questionar a validade e regularidade de actos integrados no procedimento eleitoral, peticionando perante a ordem judiciária portuguesa o decretamento da respectiva invalidade, - mas antes, afirmando a inteira validade do processo eleitoral e dos resultados da eleição, formular, no âmbito da justiça cautelar, uma pretensão de investidura dos eleitos nos respectivos cargos sociais , em termos análogos aos que, em geral, estão previstos no art. 1500º do CPC.
Tal pretensão depara-se, porém com uma dificuldade, decorrente de – quer os Estatutos da requerente (art. 13º, nº2) , quer a própria lei ( art.48º do DL 119/83) - preverem e exigirem expressamente a «homologação » ou «aprovação» dos corpos gerentes pela autoridade eclesiástica – o Ordinário Diocesano.
Não pondo a recorrente directamente em causa a validade de tal norma estatutária, acaba por formular um verdadeiro pedido de suprimento da recusa de homologação dos resultados eleitorais, - análogo ao previsto nos «processos de suprimento», regulados nos arts.1425º e segs. do CPC, - implicando obviamente o conhecimento do mesmo que o tribunal comum fosse sindicar os fundamentos da recusa de homologação do resultado eleitoral pela autoridade eclesiástica (cf. a matéria articulada sob os nºs32º a 47º da petição).

Ou seja: face à pretensão da requerente, a tarefa do tribunal comum não se traduziria apenas em sindicar da estrita legalidade, face às disposições de direito português tidas por aplicáveis, de actos de um procedimento eleitoral ( o que, desde logo, suscitava a dúvida sobre se a tal matéria, por ligada à vida interna de uma pessoa colectiva canónica e claramente diferenciada do plano das actividades externas de solidariedade social, não seria antes aplicável o Direito Canónico ), mas antes de analisar e valorar criticamente os fundamentos da decisão de recusa de homologação pela competente autoridade eclesiástica, decretando eventualmente a falta de fundamento de tal recusa, e, em consequência, «dispensando» a homologação estatutariamente exigida como condição da investidura no cargo social.
Só que uma tal actividade está obviamente vedada aos tribunais portugueses, já que a sua realização , ao implicar que o órgão judiciário fosse sindicar os fundamentos substanciais de um acto ou decisão provindo da autoridade eclesiástica competente, colidiria frontalmente com o princípio constitucional da separação da Igreja e do Estado , proclamado no art. 41º, nº4 da Constituição.
Tal princípio envolve, para alem da não confessionalidade do Estado, a garantia da não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções e do culto, «não podendo os poderes públicos intervir nessas áreas , a não ser na medida em que, por via normativa, regulam a liberdade de organização e associação privada e o direito de reunião e manifestação, e outros direitos instrumentais da liberdade de culto»(CRP Anotada, G: Canotilho e V. Moreira, 1993, pag.244)
Seria, deste modo, solução normativa manifestamente colidente com o referido princípio constitucional a que se traduzisse em outorgar a um tribunal ou entidade pública o poder de sindicar um concreto acto praticado pela competente autoridade eclesiástica no exercício da sua tarefa de vigilância e fiscalização sobre a vida interna de associações constituídas sob a égide do Direito Canónico – não podendo , por força do referido princípio constitucional, existir zonas de interferência, sobreposição ou colisão entre as competências atribuídas aos órgãos estaduais e as conferidas às autoridades eclesiásticas.
E, ao contrário do sustentado pela recorrente, esta solução em nada colide com o direito de acesso aos tribunais, que naturalmente não implica que tenha necessariamente de ser atribuída aos tribunais portugueses jurisdição e competência para a dirimição de todos os litígios, mesmo daqueles que tenham conexão com outros ordenamentos jurídicos.

8.Nestes termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento à revista.
Sem custas, por delas estar subjectivamente isenta a entidade recorrente, nos termos do art. 2º do CCJ.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2009

Lopes do Rego (Relator)
Ferreira de Sousa
Pires da Rosa

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Apreciação da Validade das Eleições dos Corpos Sociais da Santa Casa da Misericórdia do Porto - Incompetência Material dos Tribunais Comuns

Acórdão nº STJ_07B723 de 26-04-2007

Apreciação da Validade das Eleições dos Corpos Sociais da Santa Casa da Misericórdia do Porto - Incompetência Material dos Tribunais Comuns

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I -
AA, BB, CC e DD instauraram, em 1.2.2005, nas Varas Cíveis da Comarca do Porto, com distribuição à 2.ª Vara, acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:
O Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia do Porto e a Santa Casa da Misericórdia do Porto;

Alegaram, em resumo, que:
As eleições dos corpos sociais da Santa Casa da Misericórdia do Porto, em assembleia geral que teve lugar a 28.11.04, ficaram assinaladas por irregularidades que descrevem e que tornam o acto nulo, ou, no mínimo, anulável.
Além disso, a lista B, que venceu, integra pessoas várias que nunca poderiam ter sido candidatos, pelas razões que enunciam.
Pediram, em conformidade, que se declare a nulidade – ou, subsidiariamente, se decrete a anulação - da deliberação da Assembleia eleitoral de 28 de Novembro de 2004 da Santa Casa da Misericórdia do Porto e, consequentemente, do respectivo acto eleitoral.

II -
Contestando, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia do Porto, veio arguir a incompetência do tribunal para apreciar e decidir acerca do objecto desta acção, cuja competência material entende caber ao Ordinário diocesano, nos termos e pelos fundamentos que aduziu.
Sobre esta excepção, pronunciaram-se os AA., pugnando pela sua improcedência, conforme resulta do seu requerimento de fls. 191.

III -
Por decisão de fls. 222 a 230, foi julgada procedente tal excepção e, consequentemente, foram os RR. absolvidos da instância.

IV -
Recorreram os autores e com êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que afirme a competência material do tribunal recorrido.

V -
Agrava para este Supremo Tribunal de Justiça agora a Santa Casa da Misericórdia do Porto.

Conclui as alegações do seguinte modo:
1 - Por força do art. 1º do DL 38/2003, de 8-3, passou o art. 65º-A c) do CPC a ter a seguinte redacção: “Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, os tribunais portugueses têm competência exclusiva para: (…) c) – As acções relativas à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades que tenham a sua sede em território português, bem como à apreciação da validade das deliberações dos respectivos órgãos”….
2 - Essa ressalva inicial (também presente no art. 65º do mesmo CPC) resulta do reconhecimento de que o Direito Internacional convencional, uma vez recebido, tem força jurídica superior ao Direito interno ordinário no sistema jurídico português.
3 - Um “ordenamento jurídico autónomo”, como é o caso do ordenamento jurídico canónico, distingue-se de um mero ramo de Direito na medida em que, ao contrário deste último, ele pressupõe a existência de mecanismos institucionalizados de interpretação e aplicação do Direito, maxime de tribunais próprios. É o que se passa ordenamento canónico como ordenamento jurídico próprio da Igreja Católica; e é ainda o que se passa, em alguns casos, com o ordenamento das organizações internacionais, como a ONU ou a UNESCO, etc… - - que têm jurisdição própria para os seus assuntos internos (vg. de nomeações, eleições, designação de cargos, etc…) ainda que projectem a sua actividade, por exemplo de benemerência e humanitárias, adentro de um Estado concreto.
4 - De acordo com a Concordata (quer a de 1940, quer a de 2004, tratado internacional celebrado entre a Santa Sé e o Estado Português), “A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil” (art. 10º). Por outro lado, o Estado reconhece também à Igreja Católica o direito de aplicar o direito canónico às situações nele contempladas –nomeadamente quanto à organização das entidades com “personalidade jurídica canónica”—através de Jurisdição ou Órgãos Jurisdicionais próprios.
5 - Às Misericórdias, na medida em que cooperam com os fins da Administração pública, é-lhes reconhecida, no plano estadual, um relevante interesse público ou uma utilidade pública. E nessa medida, são-lhes reconhecidas também certas posições jurídicas especiais - com relevo nomeadamente para o direito administrativo. Correspondem, nessa medida, a “instituições particulares de solidariedade social”, quanto a estas actividades e finalidades. Mas o seu substrato é, em especial - na maioria dos casos desses sujeitos, não quanto a todas as Misericórdias - uma “associação de fiéis canonicamente erigida”.
6 - Ora, esta marca genética específica está bem expressa no Compromisso a que aderem os Irmãos e que corresponde aos estatutos da ora Ré, “Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto”, aprovado pelos Irmãos e homologado canonicamente através do acto de aprovação dado em 15 de Junho pela autoridade diocesana, Ordinário da Diocese do Porto.
7 - E esta marca genética específica vem já de todos os “Compromissos” (Estatutos) anteriores, ao longo dos tempos. Para não ir mais longe, pode confrontar-se o anterior Compromisso de 1981, aprovado pelos Irmãos no tempo do Provedor ..., e depois homologado canonicamente através do decreto do Bispo do Porto Dom. ..., de 8 de Março de 1981, e onde se lê expressamente que: “Dom ... – Bispo do Porto – Fazemos saber que tendo - nos sido presentes e requerida a aprovação dos Estatutos, ou Compromisso, da Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto, em relação com a respectiva erecção canónica, HAVEMOS POR BEM: - Considerar erecta e confirmar em pessoa moral eclesiástica a Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia, também designada por “Santa Casa da Misericórdia do Porto” ou, simplesmente,”Misericórdia do Porto”; - Aprovar os presentes Estatutos, em conformidade com o Direito Canónico aplicável, designadamente com os artigos 34º e 36º do Regulamento Geral das Associações Religiosas dos Fiéis, de 23 de Maio de 1937.“
8 - No Artigo 1º do Compromisso consagra-se que “A Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto (…) é uma associação de fiéis, constituída na Ordem Jurídica Canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e praticar actos de culto canónico, de harmonia com o espírito tradicional, enformado pelos princípios da doutrina e moral cristãs.” E que “Em conformidade com a natureza que lhe advém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis, ressalvados os seu privilégios.” Esta regra - sobre a definição da associação, sua natureza, inserção na Ordem Jurídica Canónica e sujeição (administrativo - canónica) ao Ordinário diocesano - do Compromisso actual, repete, ipsis verbis, idêntico artigo 1º dos Compromissos anteriores.
9 - E quanto ao seu objecto e finalidades, dispõe o art. 4º do Compromisso que “No campo social exercerá a sua acção através das 14 Obras de Misericórdia, tanto espirituais como corporais, interpretadas à luz da moderna Doutrina Social da Igreja e da cultura da solidariedade, desenvolvendo as actividades que constarem deste Compromisso e as mais que vierem a ser consideradas convenientes e, no sector especificamente religioso, sob a invocação de Nossa Senhora da Misericórdia, que é a sua Padroeira, manterá o Culto e a acção pastoral nas suas Igrejas e Capelas”.
10 - Ora, o ordenamento jurídico canónico contempla, quanto às “associações de fiéis”, canonicamente erigidas, a distinção entre associações públicas e associações privadas. Isto é assim, expressamente, desde o Código de Direito Canónico de 1983 – que, na sequência do Concílio Vaticano II, criou a categoria de associações canónicas privadas, ao lado das (e única categoria que vinha de trás) associações de fiéis públicas. Ambas se regem constitutivamente (e quanto ao seu governo, vida interna, relações entre Irmãos, e com a autoridade de tutela eclesiástica, objectivos e finalidades) pelas regras do direito canónico. Tal como no Ordenamento jurídico estadual, da República portuguesa, também no Ordenamento Canónico há “associações de direito público” e “associações de direito privado”. E estas últimas não deixam, por isso, de se reger também pelo Ordenamento à luz do qual são erigidas e que lhes traça o quadro da sua fisionomia e configuração.
11 - Resulta da Concordata a garantia de que (Artigo 2º nº 4): “É reconhecida à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa”; e que (Artigo 10º): “A Igreja Católica em Portugal pode organizar - se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil.”
12 - Em consonância com esta regra de direito internacional convencional, estabelece o art. 25º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro, sob a epígrafe “Reconhecimento das instituições canonicamente erectas” que “A personalidade jurídica das instituições canonicamente erectas resulta da simples participação escrita da erecção canónica feita pelo bispo da diocese onde tiverem a sua sede, ou por seu legítimo representante, aos serviços competentes para a tutela das mesmas instituições”. E no art. 46º nº 1 que “os estatutos das instituições referidas no artigo anterior e respectivas alterações não carecem de escritura pública, mas devem ser aprovados e autenticados pela autoridade eclesiástica competente”.
13 - Consagra-se ainda naquela convenção de direito internacional (artigo 2º nº 1 da Concordata) que “A República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as de culto, magistério e ministério, bem como a Jurisdição em matéria eclesiástica” (sendo que a expressão “eclesiástica” quer dizer “da Igreja”, da ecclesia, e que diz respeito à Igreja – como são as suas “pessoas jurídicas”, canonicamente erigidas).
14 - É um traço genético e actual da essência da Igreja católica o serviço da caridade, das 14 obras de misericórdia pregadas pelo seu Fundador; as quais, para além do plano pessoal e individual, se expressam também como um “serviço organizado e institucionalizado” dos membros da Igreja: “pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência”, como “tarefa intrínseca”, que “faz parte da essência da sua missão originária”.
15 - Não é pelo facto de uma “associação de fiéis constituída na Ordem Canónica” poder ser, à face do Direito Canónico, uma associação privada - e não uma associação pública (e como bem sabem os Autores/ora agravados, é matéria que tem sido bem discutida e vem sendo aprofundada no âmbito canonístico, havendo muitos indícios e autores conceituados a defenderem tratar - se de associações de fiéis público - canónicas) - que deixa de estar regida pelo Direito Canónico: quanto à sua constituição e vida interna. E a esse substrato real - verdadeiro, substantivo (de uma pessoa jurídica na ordem canónica) - é reconhecida no âmbito estadual também personalidade jurídica civil.
16 - Aliás, saber se é associação canónica “privada” ou antes “pública” é questão que deve ser resolvida pelo próprio Direito Canónico onde ambas se situam e enquadram. A natureza jurídica “publica” ou “privada” da associação constituída na Ordem Canónica deriva da aplicação dos critérios e regras definidas, obviamente, neste próprio Ordenamento. Não são, obviamente, os Tribunais do Estado que vão dizer (juris dicere) se uma associação canónica é associação de fiéis pública ou privada segundo o Direito canónico.
17 - Por outro lado, é verdade que há “Misericórdias” que não são, de modo algum, “associações canónicas de fiéis”, que não são pessoas jurídicas constituídas no Ordenamento Canónico: como é o caso da “Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, que não é pessoa jurídica erigida canonicamente, mas sim e apenas pessoa jurídica no Ordenamento estadual, cujos Estatutos, diferentemente daquelas, são aprovados por Decreto-Lei do Governo e cujos órgãos dirigentes são nomeados pelo Governo; e das demais “Misericórdias” que não se tenham transformado em pessoas jurídicas de Direito Canónico através da sua “erecção canónica” ou não se tenham “integrado na Irmandade canonicamente erecta” (arts. 90º e 91º nº 1 do Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de Dezembro, e art. 95º e 96º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro).
18 - Muito diferentemente dessas, é a situação da Ré, “Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto”: a qual quis constituir-se como associação da Igreja, e foi erigida como tal por acto do Ordinário da Diocese (v. Compromisso dos Irmãos, de 1993). E que, pelos seus estatutos (ou Compromisso de Irmãos) é, antes de mais, uma “associação de fiéis constituída na Ordem Jurídica Canónica” – e à qual, nos termos da Concordata, o Estado Português reconhece, com essa fisionomia canónica genética, personalidade jurídica civil na ordem interna. E que - rezam ainda os seus Estatutos (o Compromisso dos Irmãos) - “em conformidade com a natureza que lhe advém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano”…
19 - Como se disse, não é da questão de saber se corresponde a uma associação canónica pública ou privada, que depende o critério da jurisdição dos tribunais do Estado para as questões da sua vida interna e provimento dos cargos por eleição. Ambas essas associações de fiéis, (erigidas e) constituídas na Ordem Jurídica Canónica, “públicas” e “privadas”, pertencem ao ordenamento canónico, e estão sujeitas a órgãos jurisdicionais próprios deste ordenamento jurídico específico - que é reconhecido, bem como a sua jurisdição, pelo Estado português.
20 - Diferentemente (mas não é o que está aqui em causa, nestes autos) será o que respeita ao julgamento das relações externas (duma associação canónica, e neste caso da Irmandade Ré) com terceiros: relações jurídicas estabelecidas, ou a configurar, com outros sujeitos na Ordem jurídica portuguesa (relações jurídicas contratuais, ou de propriedade ou de responsabilidade…), ou o que se passa com a actividade dos “estabelecimentos” por si detidos, por ex.º, hospitais ou escolas, e que inserem na ordem jurídica estadual e sujeitos às suas exigências e prescrições e, consequentemente, à jurisdição estadual, cível ou administrativa.
21 - A vida interna das associações jurídicas constituídas na Ordem canónica é julgada no foro próprio: o canónico, a jurisdição interna, e bem estruturada, e com processo próprio, da Igreja. De contrário, e estar-se-ia a infringir, também, o “princípio (constitucional) da separação entre a Igreja e o Estado”, na sua dimensão de não interferência na organização interna, ou vida interna, da instituição constituída na ordem canónica. Ressuscitando-se um velho regalismo (da jura in sacra) ou estatismo, que devem ser vistos como já ultrapassados nas relações entre Igreja e Estado (Sobre o assunto, pode ver-se a recente tese de doutoramento do Professor da Faculdade de Direito PAULO PULIDO ADRAGÃO, A Liberdade Religiosa e o Estado, Almedina, 2002, passim. Do mesmo autor, a Anotação “os tribunais portugueses não são competentes para julgar das questões relativas à constituição, auto-governo, ou extinção das Misericórdias [erigidas juridicamente no ordenamento canónico]; as questões inerentes à vida interna dessas associações estão sujeitas à jurisdição dos tribunais eclesiásticos”).
22 - E os Irmãos não podem desconhecer que, para os seus eventuais desentendimentos nessa qualidade, nomeadamente quanto a processo de eleições, têm um processo próprio e bem estruturado, com fase graciosa e de eventual tentativa de conciliação (cânone 1.733 do Código de Direito Canónico) e uma Jurisdição e órgãos jurisdicionais próprios. Nem desconhecer especificamente o art. 1º do Compromisso (da ora agravada), que os vincula, e que consagra que em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano…
23 - Por outro lado, do art. 7º do Estatuto das IPSS aprovado pelo antigo DL nº 519-G2/79, de 29 de Dezembro, não se pode retirar que os órgãos jurisdicionais canónicos não sejam os competentes para dirimir as causas respeitantes à vida interna das instituições da Igreja, das associações constituídas na Ordem Jurídica Canónica a que é reconhecida personalidade civil na ordem estadual. Em primeiro lugar, porque tal norma é muito geral; mesmo a entender-se que se refere apenas a Tribunais do Estado, sobrará sempre um muito vasto campo de aplicação, do disposto nesse artigo, para todas as demais instituições, para além das (ou ressalvando as) pessoas jurídicas da Igreja; e mesmo quanto a estas, sobrará ainda um campo para a sua aplicação no que diz respeito à configuração e julgamento da suas relações jurídicas externas, com outros sujeitos de direito estadual. Não já quanto à sua vida interna, quanto ao provimento dos seus cargos por designação ou eleição.
24 - Em segundo lugar, porque tal norma do Estatuto das IPSS tem que ser lida à luz da ressalva expressa contida no art. 2º nº 3 do próprio Decreto-Lei que aprova tal Estatuto e que pontualiza que …“tratando-se de organizações ou instituições da igreja católica, a aplicação do Estatuto far-se-á com respeito pelas disposições da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 7 de Maio de 1940”. Ou seja, é o próprio Decreto-Lei em causa - que contém a norma muito geral invocada pelos Autores/agravados-que faz, de princípio, a expressa ressalva jurídica quanto à necessidade de ler tal norma e aplicá-la sempre de harmonia e com respeito pelo que resulta do tratado internacional que o Estado Português celebrou (a Concordata). Aliás, a não ser assim, haveria uma potencial ofensa ao art. 8º nº 2 da CRP, como se viu acima.
25 - Por último, se esse artigo 7º estivesse positivamente a determinar uma jurisdição competente, a atribuir por si e autonomamente uma competência judicial, se fosse ele a norma-fundamento, como pretendem os Autores/ora agravados, da atribuição aos tribunais comuns da competência para julgarem a presente questão, então, tal norma, nesse segmento (atributivo de competência) seria também claramente inconstitucional na medida em que editada com invasão da reserva legislativa da Assembleia da República, sem a necessária autorização legislativa da AR (art. 167º alínea j/ da CRP na versão de 1982; correspondente ao actual art. 165º nº 1 alínea p/).
26 - Julgou, pois, bem a douta sentença de 1ª instância que entendeu ser o tribunal comum incompetente. Aliás, na esteira da jurisprudência do STJ colhida no Acórdão de 11.07.1985 ( in BMJ nº 349, pp. 432 e ss.), e nos recentes Acórdão do mesmo STJ de 17.02.2005 (proc. 05B116, publicado no site www.dgsi.pt ) e de 30.07.2004 (proc. 04B4525, publicado no mesmo site www.dgsi.pt ) todos tirados por unanimidade, e onde se conclui que “no caso das misericórdias associações de fiéis constituídas na Ordem Jurídica Canónica, cabe ao ordinário diocesano a aprovação dos respectivos gerentes” e “essa aprovação abrange as irregularidades na admissão de «irmãos», bem como as decorrentes do respectivo processo eleitoral”. E acórdão onde muito bem se explica ainda que “é certo que as Misericórdias se regem pelo respectivo “Compromisso” quanto à convocação, funcionamento e competência deliberativa, e, nos casos omissos, pelo regime previsto nos arts. 12º e 13º, por remissão do art. 69º nº 1 do EIPSS. No entanto, esse nº1 do art. 69º não deixa, a final, de excepcionar “as sujeições canónicas que lhe são próprias”, ressalvando outrossim o nº 3 da aplicação do preceituado no nº 1 “tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social”.
27 - Ora, no douto Acórdão aqui objecto de recurso, pelo contrário, as referências (retiradas do Ac. da RP, de 05.05.2005) a alguns cânones do Código de Direito Canónico, não estão acompanhadas da indicação de que tal Código novo apenas entrou em vigor em 1983 (em 27 de Novembro), e só com ele foi consagrada, como acima se referiu, inovatoriamente a categoria de associações de fiéis privadas, para valer daí para a frente obviamente, sendo as anteriores, as pessoas jurídicas erectas já anteriormente na ordem canónica, em princípio “associações religiosas de fiéis” de carácter público-canónico;
28 - Depois, neste Acórdão agora recorrido, dá-se uma interpretação um pouco distorcida do art. 69º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro. É que, neste art. 69º consagra-se que em primeiro lugar (de precedência jurídica), no regime aplicável às irmandades da Misericórdia, estão “as sujeições canónicas que lhes são próprias”. Com efeito, quando, nesta norma, se consagra que vale “o regime previsto no presente diploma, sem prejuízo de”… significa que a primazia é dada, é reconhecida na própria lei, às sujeições próprias ao direito canónico…
29 - O que, aliás, faz todo o sentido: pois que o substrato daquela pessoa jurídica reconhecida como “instituição de solidariedade social” é, nestes casos (e não o é assim em todas e quaisquer Misericórdias: cfr. art. 95º do mesmo diploma), uma entidade da Igreja, uma pessoa jurídica constituída (“erecta”) no ordenamento canónico pela autoridade canónica competente. Por isso, também, o disposto no art. 71º nºs 1 e 3 do diploma: assegura-se a regra de que a irmandade “pode ser extinta pelo ordinário diocesano”, e ainda a hipótese de a irmandade ser “extinta” enquanto “instituição de solidariedade social” mas continuar a “subsistir” como Irmandade e pessoa jurídica “na ordem jurídica canónica”…
30 - E esta primazia da aplicação do ordenamento canónico leva ainda - quer se trate de associação pública de fiéis, quer se tratasse de associação privada canónica - que é deste ordenamento que hão-de sair os critérios delimitadores, e é na sua jurisdição específica, e aceite pelo Estado português, que tais controvérsias devem ser julgadas.
31 - Por fim, a verdade é que a questão da natureza jurídico-canónica das associações de fiéis (envolvendo o saber se é associação pública ou privada de fiéis) é uma questão eventualmente discutível e carecida de um maior aprofundamento doutrinário do que é superficialmente citado no Acórdão. E testemunho disto mesmo é a existência doutras posições que perfilham a doutrina de que tais Irmandades constituem hoje “associações de fiéis públicas” (no direito canónico), como defende o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (em parecer citado pelo Ac.da Relação), e de insignes canonistas como o Doutor Silvestre Ourives Marques (Eborensia, p. 200 e ss), o Doutor José António Marques e também, entre outros, o catedrático de direito Civil e Canónico Prof. Gaetano Castro, que defende a natureza pública desta associação…. E até podendo dar-se o caso de algumas Irmandades da Misericórdia serem associações canónicas públicas e outras serem associações canónicas privadas…, não tendo todas necessariamente o mesmo formato jurídico-canónico….
32 - Seja como for, é definição, esta, como se disse, que resultará dos próprios critérios jurídicos e científico-dogmáticos do Ordenamento Canónico…, e que tem jurisdição própria para apreciar tais questões - e que o Estado português respeita, e cuja autonomia jurisdicional aceita.

TERMOS EM QUE, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs, o Acórdão recorrido fez errada interpretação das normas supracitadas e nomeadamente do art. 65º - A alínea c) do CPC, arts. 10º e 2º da Concordata, artigos/cânones 232º § 1º, 303º - §3º, 304º - §1º, 323º - §1º e 1.733º do Código de Direito Canónico de 1983 (e também as regras do direito canónico promulgadas pela conferência episcopal portuguesa para as Associações de Fiéis: “Normas Gerais” promulgadas em 15 de Março de 1988, supracitadas), e sobretudo do art. 69º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro (EIPSS), e ainda do art. 7º do DL 519-G2/79, e art. 8º nº 2 da CRP - pelo que deverá ser julgado procedente o presente recurso, revogando - se o douto acórdão agravado, sendo em consequência substituído por decisão que julgue não serem os tribunais comuns, os competentes para a questão dos autos, mas sim a Jurisdição própria eclesiástica, nos moldes prescritos no direito canónico.
E, em abono das sua posições, juntou dois pareceres.

Contra-alegaram os agravados AA, BB e DD, concluindo como segue:
1 - A alínea c) do artigo 65-A do CPC na redacção que lhe foi dada pelo art.º 1.º do DL 38/2003, de 8 de Março, não dá qualquer elemento para a decisão por que a Agravante se expande,
2 - Limitando-se a repetir a prevalência do estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e (outras) leis especiais de força superior,
3 - Pelo que o reconhecimento de que o direito internacional convencional, uma vez recebido, têm força jurídica superior ao direito interno ordinário no sistema jurídico português é mera redundância.
4 - Como se reconhece que um ordenamento jurídico autónomo não é um ramo de direito mas uma unidade hipotalássica.
5 - E mesmo sem aderir a uma tese egológica, que postule a sua total plenitude, o direito canónico, o mais antigo, cultivado e debatido depois do Direito Romano, é verdadeiramente um ordenamento jurídico autónomo,
6 - Que o Estado Português, por força da Concordata de 1940 e agora a de 2004, se obrigou a respeitar.
7 - Mas certamente que dentro da eterna definição e distinção do que é de Deus e o que é de César.
8 - É certo que os limites, por vezes, são difíceis de precisar com exactidão.
9 - E aqui põe-se a questão de definir a caracterização das Irmandades da Misericórdia quer institucional quer funcionalmente.
10 - Que são associações de fiéis é ponto assente,
11 - Já o não sendo a sua natureza de associações públicas ou privadas
12 - E muito menos a sua aceitação como instituições da Igreja Católica.
13 - E mesmo aceitando sem reservas essa caracterização
14 - Se toda a sua actividade é regulada pelo direito canónico ou se o império deste se limita à matéria religiosa,
15 - Deixando de lado a actividade temporal das instituições - a sua gestão e fins assistenciais ..
16 - Aliás, da Concordata não resulta a vinculação da República a regra de competência internacional.
17 - As Misericórdias nasceram à sombra da Igreja, mas nunca foram Igreja.
18 - Os homens bons de Lisboa que reuniram na Sé sob o impulso de Dona Leonor e de Frei Miguel Contreiras e prestaram juramento na Capela da Terra Cota criavam obra de Deus, mas não da Igreja na sua comovente fraseologia.
19 - E se esta não tem hoje estatuto de Misericórdia, estando aliás expressamente excluída do estatuto das IPSS, deve-se à sua absorção pelo Estado na reforma de Mouzinho da Silveira.
20 - As demais, ao longo de mais de cinco séculos (completados em 14 de Agosto de 1998) nunca se consideraram instituições da Igreja.
21 - E se é certo que também os leigos são Igreja e a maior parte, houve sempre um distinguo entre o que depende directamente da hierarquia e aquilo que é decidido por um colectivo, maior ou menor de fiéis.
22 - E a distinção achou sempre acolhimento na nossa lei civil.
23 - O Estatuto das IPSS, presentemente em vigor, dedica todo o seu Capítulo II - ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS, com uma Secção - também II - para as Instituições da Igreja Católica.
24 - As Irmandades da Misericórdia, essas aparecem já no Capítulo III - Secção II - o que claramente significa que o nosso legislador as não considerou organizações da Igreja Católica.
25 - É que assim como os cidadão portugueses, enquanto tais, podem criar no seio do Estado Português instituições de direito privado, que não são obviamente do Estado,
26 - Também os fiéis católicos, enquanto tais, podem criar instituições que não sejam da Igreja,
27 - Sendo coisa completamente diferente associação na Igreja de associação da Igreja.
28 - Obviamente que tal como os cidadãos que somos todos nos temos de conformar com as leis nacionais quando criamos qualquer instituição, tanto substancial como formalmente,
29 - Também os católicos, agindo nessa condição, têm de se conformar com as exigências - materiais e formais - da Igreja.
30 - Daí o art.º 1.º do Compromisso da Agravante falar de uma erecção canónica que a sujeita à autoridade do Ordinário Diocesano, de modo similar ao das demais associações de fiéis.
31 - A erecção canónica é, no entanto, mero requisito de forma que a não qualifica mas que apenas lhe confere personalidade.
32 - Mas logo ali, mesmo artigo do Compromisso, se ressalvam os seus privilégios, um dos quais é o de se administrar por si própria, como decorre há quinhentos anos.
33 - De salientar que secularmente sempre se distinguiu entre organizações da Igreja e organizações de fiéis.
34 - Aliás, contrariamente ao que se alega no doutíssimo arrazoado da Agravante, as associações provadas de fiéis não foram criadas pelo Vaticano II, mas remontam aos primórdios da Cristandade.
35 - As ágapes em que nas catacumbas se distribuíam alimentos e roupas eram objectivamente associações de fiéis e não da Igreja.
36 - E depois por todos os séculos, os homens de honesta vida, boa fama, sã consciência, tementes a Deus, guardadores dos seus mandamentos, mansos e humildes de coração e sobretudo disponibilizados para o serviço do próximo, agindo, embora, no seio da Igreja, não eram instituições desta.
37 - Genericamente, pode mesmo afirmar-se que são muito mais as iniciativas e associações de fiéis do que as instituições da Igreja.
38 - O que se compreende dada a força apelativa da caridade, comparativamente com a qual, todos os actos de virtude, mesmo os superiormente heróicos, nada são.
39 - Assim se expressou Dom António Ferreira Gomes, in "CARTAS AO PAPA".
40 - Invocando o autor a lição de São Paulo, segundo a qual nem uma eloquência que fale línguas de todos os homens e até a dos anjos, nem uma fé capaz de transferir montanhas, nem o dom da profecia, nem a ciência e conhecimento de todos os mistérios, terão qualquer valor, se não houver caridade.
41 - E esta acção caritativa, individual ou organizada, s desenrolou no quadro preconizado na Epístola aos Coríntios,
42 - Sem que, quando colectiva, se tivesse de tratar de iniciativa da Hierarquia ou sua confirmação institucionalizada.
43 - Aliás a erecção da primeira Misericórdia dá-lhe nitidamente a caracterização de associação privada de fiéis, nascida da vontade de fiéis, com o apoio é certo da Coroa (Dona Leonor regia o império, por ausência do País de seu irmão, Dom Manuel) e a aquiescência do Cabido da Sé de Lisboa, que nenhuma intervenção teve, no entanto, sobre o acto de criação.
44 - E as que imediatamente se lhe seguiram, como é o caso da Santa Casa da Misericórdia do Porto nasceram da mesma forma.
45 - Em numerosos itens das suas conclusões repete a Agravante o argumento de que a Igreja pode criar instituições que se regem pela sua lei o que obviamente se não contesta.
46 - A questão todavia é muito mais simples.
47 - A Santa Casa da Misericórdia do Porto foi criada por vontade dos fiéis e a posterior erecção canónica não lhe modifica o estatuto.
48 - Acresce que pública ou privada, a associação só escapa à tutela da lei portuguesa - substantiva ou adjectiva - quando a matéria não for da lei meramente civilística ou administrativa.
48 (1)”. - No caso, ninguém fala de ofensa à integridade da fé e dos costumes ou de desvio nos fins da Instituição.
49 - Está somente em causa a regularidade dum processo eleitoral.
50 - Duma questão entre a Instituição e alguns irmãos,
51 - Fora da sublimidade das coisas espirituais,
52 - Mas da consideração, entre outras coisas, de que uma mesa de voto, aberta doze horas, não pode permitir o exercício do direito de voto a cerca de três mil cidadãos, irmãos com capacidade eleitoral activa.
53 - Trata-se de um caso típico - o mais tipo possível e também o mais simples de definir - da aplicabilidade do art.º 7.º do Estatuto velho, mas que se mantém em vigor, que defere aos tribunais portugueses a competência ratione materiae para discutir questões entre a instituição e seus associados.
54 - A regra in foro utimur pode e deve dar a composição do conflito.
55 - E, mesmo na possibilidade de intervenção de várias ordens (pluralidade de ordens) que nem sempre é o de conflito de ordens, não tem de optar-se pela hetero- integração, naturalmente de afastar quando a aplicável possui todos os elementos para a definição.
56 - Aliás, da Concordata não resulta a vinculação da República a regra de competência internacional.
57 - São assim os tribunais comuns competentes para apreciação da matéria subjacente aos autos.
58 - E de qualquer forma, sempre será de concluir pela impossibilidade de discutir agora a questão da competência do Tribunal que se fixou pelo trânsito da decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar.
Terminam pedindo que se mantenha a douta decisão do Tribunal da Relação do Porto.

Contra-alegou também o recorrido CC, concluindo que:
1 - Por extemporâneas, as alegações, embora mui doutas, da Ilustríssima Agravante, têm de ser desatendidas.
2 - E ainda que assim não seja, julga-se que o trânsito em julgado da providência cautelar, terá fixado carácter definitivo, para a presente causa, da competência dos tribunais comuns.
3 - De qualquer forma, o Acórdão que o presente recurso visa pôr em causa, não viola minimamente a alínea c) do art.º 65-A do CPC (redacção do art.º 1.º do DL 38/2003, de 8 de Março) que, contrariamente ao pretendido pela Agravante, estabelece directamente a competência dos tribunais portugueses para a apreciação da validade das deliberações dos órgãos das pessoas colectivas.
4 - É certo que a Agravante invoca a oposição do porventura estabelecido em tratado.
5 - Mas nenhum tratado refere expressamente o desaforamento.
6 - Não se contesta que o direito canónico seja um ordenamento jurídico autónomo.
7 - E que qua tale tenha tribunais próprios.
8 - Tribunais que o Estado Português tem obviamente de respeitar face à Concordata.
9 - Coisa diferente é esses tribunais invadirem a área de competência ratione materiae dos nossos tribunais.
10 - Sejam ou não as Misericórdias instituições particulares ou públicas de fiéis,
11 - Pois numa e noutra hipótese são instituições de fiéis e não da Igreja.
12 - E da Concordata não resulta a vinculação da República Portuguesa a regra de competência internacional.
13 - Também nunca se contestou nem contesta que seja a Agravante uma associação de fiéis constituída na ordem jurídica canónica,
14 - Ou que o Estado Português tenha - e muito louvavelmente - reconhecido à Igreja e aos seus fiéis plena liberdade para todos os fins na Concordata referidos,
15 - Nomeadamente para o exercício da caridade, a maior de todas as virtudes, já na lição do Apóstolo Paulo.
16 - Tradicionalmente, as nossas misericórdias foram sempre associações de fiéis católicos.
17 - E se algumas saíram daquela órbita foi pela napoleonização das nossas instituições.
18 - Primeiro por Mousinho e seus asseclas, quando foi nacionalizada a Misericórdia de Lisboa, cujo nome é uma excrescência histórica,
19 - Aliás mantida para induzir e conservar em erro a parte menos esclarecida das nossas populações.
20 - Depois, o regime liberal durante toda a Monarquia Constitucional, a legislação de Afonso Costa e o Código Administrativo de Marcelo Caetano consagraram regime dualista que persistiu.
21 - Felizmente, a Misericórdia do Porto, foi sempre e mantém ainda característica de associação de fiéis católicos.
22 - Mas não é, repete - se, uma associação da Igreja Católica.
23 - O nosso legislador distinguiu os dois tipos de instituições no Estatuto das IPSS.
24 - Assim, na Secção II do Capitulo II ocupa - se das Instituições da Igreja Católica;
25 - Reservando para o capitulo III, secção II o regime das Irmandades da Misericórdia.
26 - Daqui parece ter logo de inferir - se que os foros têm de ser diferentes, bem como os regimes básicos,
27 - Certamente que a justiça eclesiástica para os primeiros
28 - E a justiça nacional para o que não for estritamente religioso nas segundas.
29 - A separação da Igreja e do Estado, dando a Deus o que é de Deus e a César o que é de César está assim perfeitamente delimitada.
30 - Dois regimes básicos, dois foros.
31 - E para as IPSS que não sejam instituições da Igreja Católica, stricto sensu, o foro determina - se segundo o art.º 7.° do Estatuto do Estatuto saído do DL 519-02/79, de 29 de Setembro,
32 - Mantido em vigor por todas as subsequentes alterações.
33 - É por ele que tem de aferir-se do foro competente para os presentes autos.
34 - As ressalvas que com pertinácia e afinco a Agravante pretende impor limitam-se às organizações da Igreja Católica que as Misericórdias não são, mau grado as suas sujeições canónicas.
35 - Depender da Igreja não é ser Igreja,
36 - Como depender do Estado não é ser Estado.
37 - E as sujeições canónicas que lhes são aplicáveis são as resultantes dos cânones 305, 321 a 326.
38 - A questão parece reduzir-se assim a uma situação de extrema clareza.
39 - Não é a disciplina eclesiástica, não é a integridade da fé, não é a não mácula dos costumes que estão em causa ...
40 - Mas tão - somente uma questão entre a Misericórdia e seus irmãos,
41 - A propósito duma assembleia geral que o Presidente da Mesa dirigiu em total desconformidade com os estatutos e até a lei portuguesa,
42 - Colocando, para além do mais, alguns irmãos na impossibilidade prática de votar.
43 - É, pois, típica e indiscutivelmente, uma questão que se levantou entre a Irmandade e os seus irmãos.
44 - E é para este tipo de questões que existe o art.º 7.° (o do foro competente) disposição que tem resistido a todas as alterações legislativas de que o nosso sistema tem sido tão pródigo ao longo dos últimos anos.
45 - Repetindo, pois, é certo que se está perante uma questão levantada entre a Instituição e seus associados sobre a matéria que não tem nada de religioso, que não contende com nenhum dos valores que a Igreja tem o direito de preservar.
46 - Os Tribunais Eclesiásticos, pela sua eminente dignidade, têm de ocupar-se de assuntos de maior transcendência nos domínios da fé e dos costumes.
Assim, ou por extemporaneidade das alegações a que se está respondendo,
Ou porque na providência cautelar se tomou já indiscutível a matéria para o caso in judice,
Ou pelo império do art.º 7 do Estatuto das IPSS, mas que se mantém em vigor, tem o presente recurso que improceder, mantendo-se a mui douta e perfeitamente alicerçada decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto.
………………………

VI -
Ultrapassada, por despacho do relator, a argumentação da intempestividade das alegações levantada pelo recorrido CC, a questão que se nos depara consiste em saber se os tribunais civis são competentes para conhecerem da presente causa.
Para sobre ela tomarmos posição, vamos:
Determinar se o decidido, no procedimento cautelar, sobre a competência formou caso julgado que valha nesta acção principal;
Indagar a natureza das misericórdias e, logo a seguir, a natureza da Santa Casa da Misericórdia do Porto;
Obtida esta, seguir para a aferição do seu regime jurídico atentando - sempre na perspectiva do acto eleitoral que se nos depara - no artigo 41.º da Constituição, no regime das Concordatas e no que resulta da lei interna portuguesa.

VII -
o plano factual, damos aqui, brevitatis causa, o que ficou dito supra em I.

VIII -
O procedimento cautelar instaurado foi preliminar relativamente à acção e nele se conheceu, com os limites próprios, de facto e de direito.
A competência do próprio tribunal integra-se no conhecimento de direito, de sorte que vale o comando do artigo 383.º, n.º4 do Código de Processo Civil. Não tem esse conhecimento qualquer influência na acção principal.
Mas, mesmo que, por este caminho, a tal não se chegasse, sempre haveria que atender ao argumento de maioria de razão que resulta do artigo 510.º, n.º 3 do mesmo Diploma Legal. Se a declaração genérica feita no saneador da acção principal sobre a competência não constitui caso julgado mesmo dentro do processo, por maioria de razão, tal decisão tomada, também em termos genéricos, no procedimento cautelar (veja-se folhas 135 do I volume) deve estar despida da força própria daquela figura.

IX -
As misericórdias vêm de muito longe na nossa história. Em 15 de Agosto de 1498 foi fundada a primeira, em Lisboa e, à morte da rainha D. Leonor, em 1525, já havia em Portugal 61.
Com um regime jurídico nem sempre claro, como é bem compreensível, foram atingidas com o artigo 43.º do Decreto n.º 23 de 16.5.1832, tendo a respectiva tutela passado, pelo menos no plano legal, para os perfeitos das províncias. Depois, o artigo 108.º § 8.º do Código Administrativo de 1842, passou a tutela para a esfera do governador civil, que continuou com o artigo 186.º do Código Administrativo de 1878 e com o artigo 220.º, n.º 2 do Código Administrativo de 1886.
O Código Administrativo de 1936-40 incluiu as misericórdias no capítulo dedicado às associações beneficentes ou humanitárias, ficando a criação e administração daquelas reservada às irmandades ou confrarias da Igreja Católica, ainda que os “compromissos” carecessem de aprovação do Governo (artigos 372.º do Decreto-Lei n.º 27.424 de 31.12.1936 e 433.º do Decreto-Lei n.º 31.095, de 31.12.1940).
Com o Decreto-Lei n.º 618/75, de 11.11 foi levada a cabo a nacionalização dos hospitais das misericórdias.
Seguiu-se o Decreto-Lei n.º 519-G/79, de 29.12 que, embora considerando as misericórdias como pessoas colectivas de direito privado do Estado Português, as teve como incluídas na ordem jurídica canónica, com as sujeições canónicas daí resultantes (art.ºs 56.º e 57.º).
Com o Decreto-Lei n.º119/83, de 25.2. – que aprovou o que chamou “Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social” - acabou-se com a distinção entre irmandades e misericórdias, reconheceram-se ambas como “constituídas na ordem jurídica canónica” (artigo 68.º, n.º 1) e precisou-se que se lhes “aplica directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhe são próprias.” (2)ssa para o presente caso.
Paralelamente a esta evolução, situada no direito interno português, caminhou, vinda também de muito longe no tempo, toda uma realidade canónica que teve como objecto as misericórdias.
Actualmente, o Código de Direito Canónico de 1983, dedica os cânones 298 e seguintes às “Associações de Fiéis”, precisando logo que “existem na Igreja” associações distintas, incluindo as destinadas a actividades de apostolado, contando-se entre elas, as que visam o exercício de obras de piedade ou de caridade.
Dos cânones 305.º e 323 resulta que todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente. O que é reafirmado no artigo 11.º das “Normas Gerais para Regulamentação das Associações de Fiéis”, aprovadas pela Conferência Episcopal Portuguesa e publicadas para entrarem de imediato em vigor em 15.3.1988, sujeitando a tais normas gerais – agora já no artigo 116.º § 1.º - todas as associações de fiéis, quer existentes antes do actual Código de Direito Canónico, quer surgidas depois. Resultando explicitamente do § 2.º do artigo 41.º que as associações de fiéis podem ser, no plano civil, instituições particulares de solidariedade social.
E, reunida em 15.11.1989, em Fátima, a Conferência Episcopal emitiu o que chamou “Declaração Conjunta dos Bispos sobre a dimensão pastoral e canónica das Misericórdias Portuguesas”, constando do seu ponto 4 o seguinte:
“Nesta conformidade e tendo em conta: que a Autoridade Eclesiástica interveio, habitualmente, na existência e acção das Irmandades da Misericórdia através de actos jurídicos; que as Misericórdias têm, na sua maior parte erecção canónica e Estatutos aprovados pelo Ordinário diocesano; que mantêm culto público em igrejas e capelas próprias com capelão nomeado; que continuam a dedicar-se a actividades de pastoral social de grande alcance; que muito há a esperar de cada Santa Casa da Misericórdia e do seu conjunto, bem como da acção das Misericórdias Portuguesas, a Conferência Episcopal Portuguesa, sem esquecer a fisionomia própria das Misericórdias, criada através da história, e desejando que elas a conservem, considera as Misericórdias Portuguesas Associações Públicas de Fiéis, com os benefícios e exigências que lhes advêm do regime do Código de Direito Canónico, especialmente nos cânones 301 e seg.s e 312 e seg.s.”
Este texto encerra já uma tomada de posição sobre a natureza pública ou privada das misericórdias enquanto associações de fiéis, discussão que, se conduzisse à natureza privada, levaria as autoridades da igreja – segundo alguns autores - a um regime despido de jurisdicionalidade. Limitar-se-iam, no dizer de Vítor Melícias (Natureza Jurídica das Misericórdias, Separata de “As Associações na Igreja”, 177) a “uma genérica vigilância da autoridade eclesiástica”.
A natureza de associações públicas foi acolhida e serviu de fundamento ao Supremo Tribunal da Signatura Apostólica (a mais alta instância judicial canónica), o qual, seguindo jurisprudência anterior que ele próprio interpretou, veio, na “Sentença Definitiva” de 30.4.2005, afirmar:
“De facto, o reconhecimento da Irmandade (de Montargil) como instituição privada de solidariedade social, em direito civil, de modo algum impede que a mesma associação tenha a natureza de associação pública, no Direito Canónico.
O reconhecimento da associação, segundo o Direito civil não inclui a perda da sua natureza canónica.
Não pode, portanto, afirmar-se que “não obstante a erecção canónica a SCMM (Santa Casa da Misericórdia de Montargil) deve ser considerada como associação privada. Mais: tendo em conta a sua história e natureza canónica, a mesma na Igreja, deve ser tida como associação pública.”

X -
A Santa Casa da Misericórdia do Porto vem também de muito longe no tempo, tendo estado sob a tutela do Bispo do Porto desde a Fundação até ao já referido Código Administrativo de 1842.
No artigo 1.º do seu “Compromisso” (denominação própria para os seus estatutos, conforme n.º 2 do artigo 68.º do DL n.º 119/83) – e à semelhança da de Montargil a que alude a citada “sentença definitiva” - diz-se “constituída na Ordem Jurídica Canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, enformado pelos princípios da doutrina e moral cristãs.”
Acrescentando já no número 2 que:
“Em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis, ressalvados os seus privilégios.”

XI -
De tudo o que vimos referindo, podemos extrair uma conclusão:
A Santa Casa da Misericórdia do Porto, como misericórdia e atento o seu compromisso, é uma instituição integrante da ordem jurídica canónica como associação de fiéis pública, que visa – enformada pelos princípios da doutrina e moral cristãs – satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico, tendo, na ordem jurídica civil, a natureza de instituição particular de solidariedade social.

XII -
Obtida esta precisão conceptual, há primeiro que ver se o respectivo regime jurídico – na vertente, que nos interessa, da competência ou incompetência dos tribunais civis para conhecimento da impugnação duma assembleia geral em que se procedeu a eleição dos corpos gerentes – se pode retirar da Constituição da República Portuguesa.
Acima de tudo, dela, por ser o conjunto de normas que está no topo do nosso ordenamento jurídico.

Nos termos do artigo 41.º, n.º 4:
“As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”.
Está aqui uma emanação, em duas vertentes, da inviolabilidade de consciência, de religião e de culto.
A primeira consiste na separação entre as igrejas e outras comunidades religiosas, por um lado, e o Estado por outro;
A segunda, concatenada com a primeira, cifra-se na liberdade de organização e no exercício das funções e do culto que assistem àquelas.
A propósito deste regime de liberdade e seus limites, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, anotação a este artigo) acentuam a “não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções de culto”, com ressalva que aqui não nos interessa e Jorge Miranda vai mesmo mais longe, admitindo apenas os limites resultantes do artigo 29.º, n.º 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (A Concordata e a Ordem Constitucional Portuguesa, in A Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, ed. da Almedina, 79).

Mas, à latíssima possibilidade conferida às igrejas e confissões religiosas de se organizarem pode ser oposto o regime de liberdade que também, quanto a este ponto, enforma o Estado Português.
Podendo, então, dar-se o caso – sempre pensando no presente processo - de haver instituições que, porque prosseguem fins não só de culto religioso, como assistenciais, possam oscilar entre um lado e outro, de acordo com critérios puramente políticos ou até estarem sujeitas a regimes jurídicos híbridos.
Ultrapassadas historicamente as agudezas duma relação nem sempre boa entre o Estado e a Igreja Católica, foram mesmo concretizados acordos reguladores dos limites próprios daquele e desta. Que têm implicação manifesta nestes casos em que as instituições podem assim oscilar.
Temos, pois, aqui uma consensualidade que vai preencher o que de vazio fica com a interpretação daquele artigo da Constituição.
Este não alcança, portanto, o regime jurídico das misericórdias, antes e apenas coloca o Estado Português e a Santa Sé em pé de igualdade para livremente acordarem nesse mesmo regime jurídico.
Não é este preceito da Constituição que proporciona a solução para o nosso caso, valendo somente para se considerar aberto o caminho que foi percorrido com a celebração das Concordatas.
Como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho (ob. o loc. citado) “A separação entre o Estado e as igrejas e confissões religiosas não impede, em termos absolutos, a celebração de concordatas ou convenções entre um e outras, para regular as respectivas relações institucionais e concretizar alguma especificidade que possa haver lugar…”

XIII -
No atentar nas Concordatas, interessa-nos a Constituição Portuguesa sob outro prisma.
Reportamo-nos ao artigo 8.º, n.º 2 segundo o qual:
“As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.”
Deste preceito retirou o Tribunal Constitucional a interpretação de que “a normas do direito internacional convencional detêm primazia na escala hierárquica sobre o direito interno anterior e posterior” - Acórdãos n.ºs 118/85, 409/87 e 218/88, no BMJ n.ºs 360, 501, 370, 175 e 380,183, respectivamente.
Mais referindo aquele tribunal nestes arestos que:
“Uma norma de direito interno que contrarie uma convenção internacional em vigor na ordem interna contraria igualmente o citado princípio constitucional da primazia do direito internacional convencional, não podendo deixar de haver-se por prevalecente o vício da inconstitucionalidade, que absorve, consumindo-o, o vício da ilegalidade.”
Não nos oferece dúvida, por outro lado, que as Concordatas que Portugal assinou com a Santa Sé estão compreendidas naquele conceito de “convenção internacional” e que vigoram na ordem interna. Aliás, se dúvidas houvessem, a sua simples leitura dissipá-las-ia.
Entendemos, então, acolher sem qualquer reserva, as palavras de Jorge Miranda (Estudo citado, agora a páginas 69) quando afirma, abordando matéria relativa às Concordatas, que:
“Consequentemente, a emissão de norma interna contrária a norma internacional não constitui apenas o Estado em responsabilidade internacional; implica também a não obrigatoriedade da norma interna, por ineficácia (não propriamente por invalidade, pois o tratado não é fundamento de validade, mas tão só um obstáculo à sua eficácia).” Prosseguindo o mesmo autor, em afirmação na qual também nos louvamos, que compete aos tribunais em geral fiscalizar a contradição, atento o princípio que resultava do artigo 207.º da Constituição e agora está plasmado no artigo 204.º. Ideias que também são referidas por Vasco Pereira da Silva, em “O Património Cultural da Igreja, inserto na obra citada da Almedina, a páginas 124 e seguintes.(3)

Temos, então e sempre pensando no que especificamente nos importa, uma hierarquia:
Primeiro, a Constituição da República;
Depois, as Concordatas entre Portugal e a Santa Sé (abstraindo agora da questão de saber qual delas deve ser tida em conta e de determinar se o seu não acatamento constitui também ofensa à própria Constituição);
Em terceiro lugar, as normas internas portuguesas.

XIV -
Esta hierarquia, na sua vertente relativa ao cotejo entre as normas da Concordata e as normas internas é, aliás, afirmada pelas próprias leis internas.
É o caso do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25.2:
“A aplicação das disposições do presente Estatuto às instituições da Igreja Católica é feita com respeito das disposições da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940.”
Assim como o artigo 87.º n.º 1 da Lei de Bases da Segurança Social (n.º 32/2002, de 20.12), quando, reportando-se às instituições particulares de solidariedade social, ressalva a respectiva natureza, autonomia e identidade.
Trata-se, nestes casos, mais do que uma necessidade sob o ponto de vista técnico-jurídico, duma manifestação da sã e pacífica convivência que a separação constitucional não preclude, entre o Estado e a Igreja.

XV -
A hierarquia de que vimos falando entre as normas constantes das Concordatas e as normas de direito interno português leva-nos a atentar no teor daquelas.
E, curiosamente, ao afastamento da sua relevância, num estrito campo.
Expliquê-mo-nos:
De acordo com os artigos 3.º e 4.º da Concordata de 1940 a Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas de Direito Canónico e constituir dessa forma associações ou organizações que se administram livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica.
Mas acrescenta-se:
“Se, porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para essas associações ou corporações…”
Por sua vez, a Concordata de 2004 também estabelece que:
“As pessoas jurídicas canónicas, reconhecidas nos termos do artigo 10.º, que, além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português…”
Ou seja, é o próprio regime concordatário, que, olhado em primazia, conduz à aplicação do direito interno português no que concerne à actividade assistencial das instituições. Não é este que prevalece relativamente àquele ou que se coloca a par dele, mas aquele que determina, em plano superior, a aplicação deste.

XVI -
Só que, no próprio artigo 4.º da Concordata de 1940 precisa-se que o regime instituído para o direito português para estas associações se tornará efectivo através do Ordinário competente.
Cremos estar aqui uma estatuição relativa à incompetência dos tribunais civis para impor o próprio “regime instituído pelo direito português”. Não quiseram os outorgantes o normal, ou seja, que fossem os tribunais civis portugueses a velarem pelo cumprimento do direito interno nacional.
E, lembrê-mo-nos sempre, estamos em plano hierarquicamente superior ao das normas de direito interno português.
Assim, o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 519-C2/79 de 29.12. – que se mantém em vigor por força do disposto no artigo 98.º, al. b) do já falado Decreto-Lei n.º 119/83, de 25.2 - e que estatui que compete aos tribunais conhecer das questões que se levantem entre as instituições e os seus associados tem de ceder – na sua interpretação, mais conforme, ainda que não expressa, de que se reporta aos tribunais civis – perante aquela disposição da Concordata que atribui competência ao Ordinário.
Do mesmo modo, se, interpretando o próprio Decreto-Lei n.º 119/83, chegássemos à competência dos tribunais civis, teríamos de a afastar porquanto, já em plano superior, a questão estava resolvida. A expressão “Sem prejuízo da tutela do Estado”, do artigo 48.º e, bem assim, o artigo 69.º, têm de ser interpretados no sentido de não beliscarem a competência atribuída ao Ordinário pela Concordata. (Cfr-se, a este propósito, as referências que faz Silvestre Ourives Marques, na mencionada publicação da Almedina, páginas 107).
Em contrário, a parte final daquele artigo 48.º deve ser entendida como reforçadora do que já consta daquele artigo 4.º da Concordata, precisando um caso de intervenção das autoridades eclesiásticas. Precisamente a da aprovação dos corpos gerentes das instituições.

XVII -
Esta nossa construção complica-se, no entanto, com a entrada em vigor, em 18.12.2004 (4), da Concordata actualmente vigente.
Nela se continua, para além do regime de liberdade de organização em geral, o regime de livre constituição, modificação e extinção de pessoas jurídicas canónicas, com reconhecimento da personalidade jurídica por parte do Estado Português.
Tendo-se também atentado nas pessoas jurídicas canónicas que, além dos fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade. Estatuiu-se, em consonância com o que vinha da anterior concordata, que desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza.

XVIII -
Mas existe uma diferença.
Desapareceu a referência do artigo 4.º da Concordata de 1940 quanto à imposição do direito português pelo Ordinário competente. Pelo contrário, ficou estatuído, no artigo 11.º, que, regendo-se as pessoas jurídicas canónicas pelo direito canónico e pelo direito português, cada um é aplicado pelas respectivas autoridades.
Está em causa a violação do direito canónico: será chamada a intervir a autoridade da Igreja. Está em causa a violação do direito interno português : recorre-se aos tribunais civis.

XIX -
Levantar-se-ia, então, a questão de saber se os autores invocam a violação do direito canónico ou do direito interno português.
O que eles invocam é a violação do compromisso e este situa-se no âmbito do direito canónico, pois até na parte final se refere, em letra manuscrita, que “estão conformes às Normas de Direito Geral da Igreja e do Regulamento Geral das Associações Religiosas”.
Manteve-se, pois, para este caso, a competência do Ordinário.

XX -
De qualquer modo, para o caso de se entender que os autores, numa perspectiva indirecta relativa ao modo de funcionamento das assembleias gerais das associações de acordo com o direito interno português, também invocam a violação deste, sempre haveria a considerar que:
A Concordata de 1940 deu lugar à de 2004 em 18.12.2004.
A deliberação da assembleia geral que se ataca teve lugar em 28.11.2004.
O artigo 65.º, n.º 1 do Código de Processo Civil começa por ressalvar o que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais.
Fica, assim, novamente depositada no teor das Concordatas a resolução do conflito entre o Ordinário competente querido pela de 1940 e as autoridades civis que, nesta hipótese, poderiam ser chamadas.
Não se trata da aplicação do princípio da lei reguladora da competência emergente do artigo 22.º da LOFTJ. Não houve sucessão de competências de tribunais, em ordem a saber-se qual deles deve ser o competente. Trata-se antes de saber quem tinha a competência para fazer observar o direito que se invoca na petição inicial como violado.
E, assim sendo, entendemos que a competência há-de ser encontrada na disposição concordatária vigente ao tempo do acto que se ataca.
Segundo os autores, em 28.11.2004, foram violadas normas jurídicas cuja observação, porque vigorava a Concordata de 1940, havia de ser tornada efectiva pelo Ordinário competente. É junto dele que terão de ir.
Noutro entendimento – só admissível, aliás, dando de barato a extensão supra referida - estariam as autoridades civis portuguesas a invadir o que era da competência de outrem, a impor um direito quando não lhes cabia a elas impô-lo. Uma inaceitável retroactividade.

XXI -
A competência do Ordinário diocesano para casos com grandes semelhanças ao nosso corresponde, aliás, a orientação deste tribunal, plasmada nos Acórdãos de 11.7.1985 (BMJ 349, 432), 27.1.2005 e 17.2.2005, estes dois podendo ver-se em www.dgsi.pt. Ainda que não corresponda a orientação uniforme da nossa jurisprudência.

XXII -
Nestes termos, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão da Relação para subsistir a de primeira instância.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 26 de Abril de 2007

João Bernardo (relator)
Oliveira Rocha
Oliveira Vasconcelos

(1) Na enumeração da recorrente há dois números “48”.
(2) Este Decreto-Lei ressalva, logo no artigo 2.º, que “O Estatuto não é aplicável à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, mas esta ressalva – que, corresponde, aliás, ao que já vem de muito longe quando se estatui sobre as Misericórdias - não nos interessa para o presente caso
(3) A primazia das Concordatas é também afirmada, relativamente às normas constantes do Código de Direito Canónico, no cânone 3 deste.
(4) Artigo 33.º da própria Concordata e Aviso n.º 23/2005 do MNE, publicado no Diário da República de 26.1.2005.