segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Misericórdias. Venda de imóveis

PARECERES DOS SERVIÇOS JURÍDICOS

Parecer proferido no processo nº C.N. 36/97 DSJ

Misericórdias. Venda de imóveis

1. A Santa Casa da Misericórida do ... solicita o parecer da Direcção-Geral sobre a questão da exigibilidade, para venda de imóvel deliberada pela Assembleia Geral, do cumprimento do preceituado no artigo 23º, nº 3, do Decreto-Lei nº 119/83, de 25/2, (Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social).
A questão suscita-se porque, para titular venda de imóvel, a notária de ... “exigiu que lhe fosse entregue o documento previsto no artigo 23º, nº 3, do Decreto-Lei nº 119/83, ..., sem o qual não efectuaria a escritura de Compra e Venda referida”.
Diz-se que “Tendo sido consultados os serviços jurídicos da Tutela Eclesiástica, deram estes o parecer de que, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 69º do referido Decreto-Lei, e dado o seu carácter de Instituição erecta canonicamente, não necessita, para efeitos de alienação, do cumprimento do disposto no nº 3 do artigo 23º do mesmo Decreto.”
2. A solicitação destes Serviços, a senhora notária pronunciou-se, considerando “Por força do disposto nos nºs 1, 2 e 3 do artigo 69º do Decreto-Lei nº 119/83 ... resulta estarem as Irmandades das Misericórdias sujeitas ás disposições aplicáveis às Associações de Solidariedade Social, não tendo sido intenção do legislador fazer a sua exclusão do referido regime o que resulta claramente da letra da lei.
E de outro modo não se compreenderia, face à missão de que estão investidas, Solidariedade Social, conceito claramente definido no artigo 1º do referido decreto-lei e pelo qual pautam a sua actuação.
As referidas entidades, beneficiam de fundos e subsídios, e são-lhe concedidas determinadas regalias (isenções de contribuições e impostos) pelo Ministério da Solidariedade e Segurança Social, no qual devem estar registadas, à semelhança de todas as outras instituições de Segurança Social.
Não creio pois, que o Caracter de Instituição Erecta Canonicamente, seja motivo suficiente para afastar as Irmandades das Misericórdias do regime do referido diploma, não nos convencendo pois a referida argumentação.
Interprete-se pois, o referido artigo 23º, deste resulta que antes de efectuado qualquer acto de alienação, devem as entidades em causa recorrer ao parecer de um perito, pessoa tecnicamente credenciada para o efeito e a par do mercado imobiliário, de modo que a mesma estabeleça uma avaliação correcta e actualizada do valor do imóvel que se pretende alienar, para só depois se poder concluir se daquele acto de alienação resultam vantagens para a Misericórdia.
Não nos parece pois que a sujeição das referidas entidades à disiplina do referido decreto lei e nomeadamente ao seu artigo 23º, acarrete qualquer prejuízo para as mesmas entidades, antes pelo contrário. salvaguarda e acautela os fins a que as mesmas se destinam.”
3. Incluído no capítulo I (“Das instituições particulares de solidariedade social em geral”), secção II (“Da criação, da organização interna e da extinção das instituições”), subsecção III (“Da gestão”), o artigo 23º dispõe:
“1 - ... a alienação e o arrendamento de imóveis pertencentes ás instituições, deverá ser feita em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente.
2 - Podem ser efectuadas vendas ou arrendamentos por negociação directa, quando seja previsível que daí decorram vantagens para a instituição ou por motivo de urgência, fundamentado em acta.
3 - Em qualquer caso, os preços e rendas aceites não podem ser inferiores aos que vigorarem no mercado normal de imóveis e arrendamentos, de harmonia com os valores estabelecidos em peritagem oficial.
4 - ................................................................” No capítulo II (“Das actividades de solidariedade social das organizações religiosas”), secção II (“Disposições especiais para as instituições da Igreja Católica”), o artigo 44º estabelece que “A aplicação das disposições do presente Estatuto às instituições da igreja católica é feita com respeito pelas disposições da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940.”
E o artigo 48º que “Sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais.”
Por seu turno, no capítulo III (“Das instituições particulares de solidariedade social em especial”), secção II (“Das irmandades da Misericórdia), o artigo 69º dispõe
“1 - Às irmandades da Misericórdia aplica-se directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes são próprias.
2 - Em tudo o que não se encontra especialmente estabelecido na presente secção, as irmandades da Misericórdia regulam-se pelas disposições aplicáveis às associações de solidariedade social.
3 - Ressalva-se da aplicação do preceituado no nº 1 tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social.”
Da concordada, o artigo IV dispõe
“As associações ou organizações a que se refere o artigo anterior, podem adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos por que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administramse livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica. Se, porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e de beneficiência em cumprimento de deveres estatutários ou ..., ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza”.
4 - Em acórdão de 11 de Julho de 1985, do Supremo Tribunal de Justiça, diz-se:
“Determina-se nos cânones 298 e 299 do Código de Direito Canónico em vigor, que os fiéis podem, por meio de convénio privado celebrado entre si, constituir associações para promoverem o culto público ou a doutrina cristã ou outras obras de apostolado, como o trabalho de evangelização, o exercício de obras de piedade e de caridade e informarem a ordem temporal com o espírito cristão.
Estas associações de fiéis carecem da aprovação dos seus estatutos pela autoridade competente da Igreja, e estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica para que nelas se mantenha a integridade da fé e dos costumes, vigilância que, no tocante ás associações diocesanas compete ao Ordinário do lugar (cânone 305, 1º e 2º)
........................................................................
Em 7 de Maio de 1940 Portugal celebrou com a Santa Sé uma Concordata, ractificada em 1 de Junho imediato. E por via desse instrumento diplomático a Igreja Católica pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir por essa forma associações, corporações ou institutos religiosos, canonicamente erectos - a que o estado português reconhece personalidade jurídica (artigo 3º)-, sendo susceptíveis de adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos em que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, administrando-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica.
E se para além dos fins religiosos se propuserem também os fins de assistência e beneficiência ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para essas associações ou corporações, o qual regime se tornará efectivo através do Ordinário competente e não poderá ser mais gravoso do que o estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza (artigo 4º).
Face a este último passo no texto da Concordata, Quelhas Bigote escreveu em 1959 que o Ordinário organizará e dirigirá a vida assistencial no ponto de vista económico e financeiro das associações segundo as leis que o estado para o efeito promulgue (em Situação Jurídica das Misericórdias portuguesas, pág. 31).”
5. Pergunta-se se o artigo 23º do estatuto das IPSS se aplica às Misericórdias.
5.1. As IPSS são pessoas colectivas de utilidade pública (isto é, associações ou fundações de direito privado que prosseguem fins não lucrativos de interesse geral, cooperando com a Administração central ou local, em termos de merecerem da parte desta a declaração de “utilidade pública”, de acordo com o nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro), que se constituem para dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos - nomeadamente para fins de apoio a crianças e jovens, apoio à família, integração social e comunitária, protecção na velhice e na invalidez, promoção da saúde, educação, formação profissional e habitação social (artigo 1º do Estatuto).
5.2. Citando Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, 2ª edição, vol. I, fls. 553):
“... um diploma de 1979 - o Decreto-Lei nº 519 - G2/79, de 29 de Dezembro - destacou do conceito de pessoas colecticas de utilidade pública administrativa toda uma espécie de associações e fundações particulares, que denominou de instituições privadas de solidariedade social e que tinham por objecto facultar serviços ou prestações de segurança social. Posteriormente, o Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro, reviu e ampliou aquele diploma e consagrou o estatuto jurídico das ora designadas instituições particulares de solidariedade social, que já se não confinam ao sector da segurança social, abarcando também certas iniciativas particulares em áreas como a saúde, a educação, a formação profissional e a habitação. Estas instituições - formalmente referidas na própria Constituição (artigo 63º, nº 3) - deixaram, por lei, de ser qualificáveis como pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (Decreto-Lei nº 119/83, artigo 94º).
........................................................................
...as Misericórdias eram anteriormente pessoas colectivas de utilidade pública administrativa (C.A., artigos 433º e segs.), mas, tendo sido abrangidas no novo conceito de instituições particulares de solidariedade social, deixaram de pertencer àquela categoria e ingressaram nesta última (Decreto-Lei nº 119/83, artigos 68º e segs.)” Regime jurídico das pessoas colecticas de utilidade pública, em geral
6. É “um regime de carácter misto: por um lado, tais entidades beneficiam de certos privilégios, de que não gozam em geral as pessoas colectivas privadas - e isto porque se dedicam à prossecução de interesses gerais -; por outro lado, ficam sujeitas a deveres e encargos especiais, a que também não estão submetidas em geral as pessoas colectivas privadas - o que se justifica igualmente pelo facto de se tratar de entidades que prosseguem fins que directamente interessam à Administração como zeladora do bem comum.” (Freitas do Amaral, obra citada, fls 573).
Beneficiam do apoio financeiro do estado, e estão sujeitas a tutela administrativa.
Das IPSS
6.1. “Pelo que toca às instituições particulares de solidariedade social, o seu regime - para além do resultante do Decreto-Lei nº 460/77, de 7 de Novembro - é o que resulta do Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro. Deste último diploma constam, em especial, o princípio da autonomia institucional (artigo 3º), o princípio do apoio do Estado e das autarquias locais (artigo 4º), os direitos dos beneficiários (artigo 5º), as regras sobre criação, organização, gestão e extinção (artigos 9º a 31º), e as normas sobre tutela administrativa (artigos 32º a 39º). Há uma secção especial que regula as Misericórdias (artigos 68º a 71º) ...” (idem, fls 572).
7. Como acima se referiu, o artigo 32º do Estatuto sujeitava a autorização os actos de alienação de imóveis. Isto porque, como diz Freitas do Amaral (obra citada, fls 570).
“Sempre se entendeu, na verdade, que sendo instituições que reúnem avultados patrimónios, normalmente por dádiva generosa de particulares, é necessário fiscalizá-las para que não haja dissipação de bens, e para que as pessoas encarregadas de geri-las não administrem os patrimónios no seu interesse pessoal, mas no interesse geral que presidiu à afectação desses bens aos respectivos fins ...”
7.1. No Decreto-Lei nº 89/85, de 1 de Abril, que o revogou dizia-se que se teve em conta que “a prática tem demonstrado que a referida disposição não tem tido a eficácia prevista e que, por outro lado, cerceia de algum modo a natureza privada das instituições, que importa, acima de tudo, salvaguardar”
7.2. Isto é, reconheceu-se a necessidade de salvaguardar a natureza privada das instituições ...
8. É verdade que o artigo 23º estava estreitamente relacionado com o artigo 32º. Artigo que exigia a autorização dos serviços competentes, no âmbito da tutela administrativa. Do “preço” a que se refere o artigo 23º dependeria a concessão da autorização ...
O certo é que, revogado o artigo 32º, o artigo 23º não o foi. Continua, pois, em vigor ...
9. Daí nos pareça se impõe concluir que, como as restantes disposições do Estatuto, a disposição do artigo 23º se aplica às irmandades da Misericórdia.
10. Aplicar-se-á nos termos do nº 3 do artigo 69º. Que exclui do âmbito de aplicação do “Estatuto” tudo o que especificamente respeita ás actividades estranhas aos fins de solidariedade social.
10.1. Ora, de acordo com o nº 1 do artigo 68º, “As irmandades da Misericórdia ou santas casas da Misericórdia são associações constituídas na ordem jurídica canónica com o objectivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios de doutrina e moral cristãs”
10.2. Isto é, excepcionado estará quanto especificamente respeita à prática de actos de culto ...
11. Uma vez que, de acordo com o artigo 44º “a aplicação das disposições do estatuto às instituições da igreja católica é feita com respeito das disposições da Concordata”; uma vez que, de acordo com o artigo IV da Concordata, “se além de fins religiosos as associações ... se propuseram também fins de assistência e de beneficência ... ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente...” uma vez que, de acordo com o artigo 48º do Estatuto, “sem prejuízo da tutela do estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano ... a orientação das instituições do âmbito da sua diocese”, uma vez que, saliente-se uma vez mais, deixou de exigir-se a intervenção dos serviços da tutela para actos de alienação.
não caberá ao Ordinário apreciar se o acto a praticar especificamente respeita a actividades estranhas aos fins de solidariedade social, e como tal se trata de matéra excepcionada pelo nº 3 do artigo 69º?
Parece-nos que sim.
Tanto mais que, como se diz na certidão emitida pelo Chanceler da Cúria Diocesana de ..., a Santa Casa da Misericórdia foi autorizada a vender à Fábrica da Igreja Paroquial ...
Assim sendo,
Parece-nos que o artigo 23º do estatuto está em vigor.
Parece-nos que se aplica às Misericórdias, nos termos em que lhes é aplicável quanto no Estatuto se dispõe.
Isto é, em tudo quanto não respeite especificamente às actividades estranhas aos fins de solidariedade social.
Parece-nos que ao ordinário diocesano - a quem cumpre observar não só direito canónico, mas também as disposições aplicáveis do direito português - incumbe apreciar a natureza e fim das actividades em causa.
Ou seja, parece-nos que, apresentado documento comprovativo de que a venda foi autorizada pelo ordinário, não deverá o notário recusar a realização da escritura.
Conclusões
I - O artigo 23º do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social está em vigor e aplica-se às Misericórdias, nos termos do disposto no artigo 69º. Isto é, exceptuando quanto respeite especificamente às actividades estranhas aos fins de solidariedade social.
II - Ao ordinário diocesano - a quem cumpre observar não só o direito canónico, mas também as
disposições aplicáveis do direito português - incumbe apreciar a natureza e fim das actividades em causa (artigos 44º e 48º do Estatuto e artigo IV da Concordata).
III - Apresentado documento comprova-tivo de que a venda foi autorizada pelo ordinário, não deverá o notário recusar a realização da escritura por não se fazer prova de ter sido observado o disposto no artigo 23º.
Sobre este parecer recaiu despacho de concordância do subdirector-geral de 14.11.95.

Caderno 1 - Instituto Nacional dos Registos e do Notariado - DEZ1997

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