segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Apreciação da Validade das Eleições dos Corpos Sociais da Santa Casa da Misericórdia do Porto - Incompetência Material dos Tribunais Comuns

Acórdão nº STJ_07B723 de 26-04-2007

Apreciação da Validade das Eleições dos Corpos Sociais da Santa Casa da Misericórdia do Porto - Incompetência Material dos Tribunais Comuns

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I -
AA, BB, CC e DD instauraram, em 1.2.2005, nas Varas Cíveis da Comarca do Porto, com distribuição à 2.ª Vara, acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:
O Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia do Porto e a Santa Casa da Misericórdia do Porto;

Alegaram, em resumo, que:
As eleições dos corpos sociais da Santa Casa da Misericórdia do Porto, em assembleia geral que teve lugar a 28.11.04, ficaram assinaladas por irregularidades que descrevem e que tornam o acto nulo, ou, no mínimo, anulável.
Além disso, a lista B, que venceu, integra pessoas várias que nunca poderiam ter sido candidatos, pelas razões que enunciam.
Pediram, em conformidade, que se declare a nulidade – ou, subsidiariamente, se decrete a anulação - da deliberação da Assembleia eleitoral de 28 de Novembro de 2004 da Santa Casa da Misericórdia do Porto e, consequentemente, do respectivo acto eleitoral.

II -
Contestando, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia do Porto, veio arguir a incompetência do tribunal para apreciar e decidir acerca do objecto desta acção, cuja competência material entende caber ao Ordinário diocesano, nos termos e pelos fundamentos que aduziu.
Sobre esta excepção, pronunciaram-se os AA., pugnando pela sua improcedência, conforme resulta do seu requerimento de fls. 191.

III -
Por decisão de fls. 222 a 230, foi julgada procedente tal excepção e, consequentemente, foram os RR. absolvidos da instância.

IV -
Recorreram os autores e com êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que afirme a competência material do tribunal recorrido.

V -
Agrava para este Supremo Tribunal de Justiça agora a Santa Casa da Misericórdia do Porto.

Conclui as alegações do seguinte modo:
1 - Por força do art. 1º do DL 38/2003, de 8-3, passou o art. 65º-A c) do CPC a ter a seguinte redacção: “Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, os tribunais portugueses têm competência exclusiva para: (…) c) – As acções relativas à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades que tenham a sua sede em território português, bem como à apreciação da validade das deliberações dos respectivos órgãos”….
2 - Essa ressalva inicial (também presente no art. 65º do mesmo CPC) resulta do reconhecimento de que o Direito Internacional convencional, uma vez recebido, tem força jurídica superior ao Direito interno ordinário no sistema jurídico português.
3 - Um “ordenamento jurídico autónomo”, como é o caso do ordenamento jurídico canónico, distingue-se de um mero ramo de Direito na medida em que, ao contrário deste último, ele pressupõe a existência de mecanismos institucionalizados de interpretação e aplicação do Direito, maxime de tribunais próprios. É o que se passa ordenamento canónico como ordenamento jurídico próprio da Igreja Católica; e é ainda o que se passa, em alguns casos, com o ordenamento das organizações internacionais, como a ONU ou a UNESCO, etc… - - que têm jurisdição própria para os seus assuntos internos (vg. de nomeações, eleições, designação de cargos, etc…) ainda que projectem a sua actividade, por exemplo de benemerência e humanitárias, adentro de um Estado concreto.
4 - De acordo com a Concordata (quer a de 1940, quer a de 2004, tratado internacional celebrado entre a Santa Sé e o Estado Português), “A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil” (art. 10º). Por outro lado, o Estado reconhece também à Igreja Católica o direito de aplicar o direito canónico às situações nele contempladas –nomeadamente quanto à organização das entidades com “personalidade jurídica canónica”—através de Jurisdição ou Órgãos Jurisdicionais próprios.
5 - Às Misericórdias, na medida em que cooperam com os fins da Administração pública, é-lhes reconhecida, no plano estadual, um relevante interesse público ou uma utilidade pública. E nessa medida, são-lhes reconhecidas também certas posições jurídicas especiais - com relevo nomeadamente para o direito administrativo. Correspondem, nessa medida, a “instituições particulares de solidariedade social”, quanto a estas actividades e finalidades. Mas o seu substrato é, em especial - na maioria dos casos desses sujeitos, não quanto a todas as Misericórdias - uma “associação de fiéis canonicamente erigida”.
6 - Ora, esta marca genética específica está bem expressa no Compromisso a que aderem os Irmãos e que corresponde aos estatutos da ora Ré, “Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto”, aprovado pelos Irmãos e homologado canonicamente através do acto de aprovação dado em 15 de Junho pela autoridade diocesana, Ordinário da Diocese do Porto.
7 - E esta marca genética específica vem já de todos os “Compromissos” (Estatutos) anteriores, ao longo dos tempos. Para não ir mais longe, pode confrontar-se o anterior Compromisso de 1981, aprovado pelos Irmãos no tempo do Provedor ..., e depois homologado canonicamente através do decreto do Bispo do Porto Dom. ..., de 8 de Março de 1981, e onde se lê expressamente que: “Dom ... – Bispo do Porto – Fazemos saber que tendo - nos sido presentes e requerida a aprovação dos Estatutos, ou Compromisso, da Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto, em relação com a respectiva erecção canónica, HAVEMOS POR BEM: - Considerar erecta e confirmar em pessoa moral eclesiástica a Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia, também designada por “Santa Casa da Misericórdia do Porto” ou, simplesmente,”Misericórdia do Porto”; - Aprovar os presentes Estatutos, em conformidade com o Direito Canónico aplicável, designadamente com os artigos 34º e 36º do Regulamento Geral das Associações Religiosas dos Fiéis, de 23 de Maio de 1937.“
8 - No Artigo 1º do Compromisso consagra-se que “A Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto (…) é uma associação de fiéis, constituída na Ordem Jurídica Canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e praticar actos de culto canónico, de harmonia com o espírito tradicional, enformado pelos princípios da doutrina e moral cristãs.” E que “Em conformidade com a natureza que lhe advém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis, ressalvados os seu privilégios.” Esta regra - sobre a definição da associação, sua natureza, inserção na Ordem Jurídica Canónica e sujeição (administrativo - canónica) ao Ordinário diocesano - do Compromisso actual, repete, ipsis verbis, idêntico artigo 1º dos Compromissos anteriores.
9 - E quanto ao seu objecto e finalidades, dispõe o art. 4º do Compromisso que “No campo social exercerá a sua acção através das 14 Obras de Misericórdia, tanto espirituais como corporais, interpretadas à luz da moderna Doutrina Social da Igreja e da cultura da solidariedade, desenvolvendo as actividades que constarem deste Compromisso e as mais que vierem a ser consideradas convenientes e, no sector especificamente religioso, sob a invocação de Nossa Senhora da Misericórdia, que é a sua Padroeira, manterá o Culto e a acção pastoral nas suas Igrejas e Capelas”.
10 - Ora, o ordenamento jurídico canónico contempla, quanto às “associações de fiéis”, canonicamente erigidas, a distinção entre associações públicas e associações privadas. Isto é assim, expressamente, desde o Código de Direito Canónico de 1983 – que, na sequência do Concílio Vaticano II, criou a categoria de associações canónicas privadas, ao lado das (e única categoria que vinha de trás) associações de fiéis públicas. Ambas se regem constitutivamente (e quanto ao seu governo, vida interna, relações entre Irmãos, e com a autoridade de tutela eclesiástica, objectivos e finalidades) pelas regras do direito canónico. Tal como no Ordenamento jurídico estadual, da República portuguesa, também no Ordenamento Canónico há “associações de direito público” e “associações de direito privado”. E estas últimas não deixam, por isso, de se reger também pelo Ordenamento à luz do qual são erigidas e que lhes traça o quadro da sua fisionomia e configuração.
11 - Resulta da Concordata a garantia de que (Artigo 2º nº 4): “É reconhecida à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa”; e que (Artigo 10º): “A Igreja Católica em Portugal pode organizar - se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil.”
12 - Em consonância com esta regra de direito internacional convencional, estabelece o art. 25º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro, sob a epígrafe “Reconhecimento das instituições canonicamente erectas” que “A personalidade jurídica das instituições canonicamente erectas resulta da simples participação escrita da erecção canónica feita pelo bispo da diocese onde tiverem a sua sede, ou por seu legítimo representante, aos serviços competentes para a tutela das mesmas instituições”. E no art. 46º nº 1 que “os estatutos das instituições referidas no artigo anterior e respectivas alterações não carecem de escritura pública, mas devem ser aprovados e autenticados pela autoridade eclesiástica competente”.
13 - Consagra-se ainda naquela convenção de direito internacional (artigo 2º nº 1 da Concordata) que “A República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as de culto, magistério e ministério, bem como a Jurisdição em matéria eclesiástica” (sendo que a expressão “eclesiástica” quer dizer “da Igreja”, da ecclesia, e que diz respeito à Igreja – como são as suas “pessoas jurídicas”, canonicamente erigidas).
14 - É um traço genético e actual da essência da Igreja católica o serviço da caridade, das 14 obras de misericórdia pregadas pelo seu Fundador; as quais, para além do plano pessoal e individual, se expressam também como um “serviço organizado e institucionalizado” dos membros da Igreja: “pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência”, como “tarefa intrínseca”, que “faz parte da essência da sua missão originária”.
15 - Não é pelo facto de uma “associação de fiéis constituída na Ordem Canónica” poder ser, à face do Direito Canónico, uma associação privada - e não uma associação pública (e como bem sabem os Autores/ora agravados, é matéria que tem sido bem discutida e vem sendo aprofundada no âmbito canonístico, havendo muitos indícios e autores conceituados a defenderem tratar - se de associações de fiéis público - canónicas) - que deixa de estar regida pelo Direito Canónico: quanto à sua constituição e vida interna. E a esse substrato real - verdadeiro, substantivo (de uma pessoa jurídica na ordem canónica) - é reconhecida no âmbito estadual também personalidade jurídica civil.
16 - Aliás, saber se é associação canónica “privada” ou antes “pública” é questão que deve ser resolvida pelo próprio Direito Canónico onde ambas se situam e enquadram. A natureza jurídica “publica” ou “privada” da associação constituída na Ordem Canónica deriva da aplicação dos critérios e regras definidas, obviamente, neste próprio Ordenamento. Não são, obviamente, os Tribunais do Estado que vão dizer (juris dicere) se uma associação canónica é associação de fiéis pública ou privada segundo o Direito canónico.
17 - Por outro lado, é verdade que há “Misericórdias” que não são, de modo algum, “associações canónicas de fiéis”, que não são pessoas jurídicas constituídas no Ordenamento Canónico: como é o caso da “Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, que não é pessoa jurídica erigida canonicamente, mas sim e apenas pessoa jurídica no Ordenamento estadual, cujos Estatutos, diferentemente daquelas, são aprovados por Decreto-Lei do Governo e cujos órgãos dirigentes são nomeados pelo Governo; e das demais “Misericórdias” que não se tenham transformado em pessoas jurídicas de Direito Canónico através da sua “erecção canónica” ou não se tenham “integrado na Irmandade canonicamente erecta” (arts. 90º e 91º nº 1 do Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de Dezembro, e art. 95º e 96º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro).
18 - Muito diferentemente dessas, é a situação da Ré, “Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto”: a qual quis constituir-se como associação da Igreja, e foi erigida como tal por acto do Ordinário da Diocese (v. Compromisso dos Irmãos, de 1993). E que, pelos seus estatutos (ou Compromisso de Irmãos) é, antes de mais, uma “associação de fiéis constituída na Ordem Jurídica Canónica” – e à qual, nos termos da Concordata, o Estado Português reconhece, com essa fisionomia canónica genética, personalidade jurídica civil na ordem interna. E que - rezam ainda os seus Estatutos (o Compromisso dos Irmãos) - “em conformidade com a natureza que lhe advém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano”…
19 - Como se disse, não é da questão de saber se corresponde a uma associação canónica pública ou privada, que depende o critério da jurisdição dos tribunais do Estado para as questões da sua vida interna e provimento dos cargos por eleição. Ambas essas associações de fiéis, (erigidas e) constituídas na Ordem Jurídica Canónica, “públicas” e “privadas”, pertencem ao ordenamento canónico, e estão sujeitas a órgãos jurisdicionais próprios deste ordenamento jurídico específico - que é reconhecido, bem como a sua jurisdição, pelo Estado português.
20 - Diferentemente (mas não é o que está aqui em causa, nestes autos) será o que respeita ao julgamento das relações externas (duma associação canónica, e neste caso da Irmandade Ré) com terceiros: relações jurídicas estabelecidas, ou a configurar, com outros sujeitos na Ordem jurídica portuguesa (relações jurídicas contratuais, ou de propriedade ou de responsabilidade…), ou o que se passa com a actividade dos “estabelecimentos” por si detidos, por ex.º, hospitais ou escolas, e que inserem na ordem jurídica estadual e sujeitos às suas exigências e prescrições e, consequentemente, à jurisdição estadual, cível ou administrativa.
21 - A vida interna das associações jurídicas constituídas na Ordem canónica é julgada no foro próprio: o canónico, a jurisdição interna, e bem estruturada, e com processo próprio, da Igreja. De contrário, e estar-se-ia a infringir, também, o “princípio (constitucional) da separação entre a Igreja e o Estado”, na sua dimensão de não interferência na organização interna, ou vida interna, da instituição constituída na ordem canónica. Ressuscitando-se um velho regalismo (da jura in sacra) ou estatismo, que devem ser vistos como já ultrapassados nas relações entre Igreja e Estado (Sobre o assunto, pode ver-se a recente tese de doutoramento do Professor da Faculdade de Direito PAULO PULIDO ADRAGÃO, A Liberdade Religiosa e o Estado, Almedina, 2002, passim. Do mesmo autor, a Anotação “os tribunais portugueses não são competentes para julgar das questões relativas à constituição, auto-governo, ou extinção das Misericórdias [erigidas juridicamente no ordenamento canónico]; as questões inerentes à vida interna dessas associações estão sujeitas à jurisdição dos tribunais eclesiásticos”).
22 - E os Irmãos não podem desconhecer que, para os seus eventuais desentendimentos nessa qualidade, nomeadamente quanto a processo de eleições, têm um processo próprio e bem estruturado, com fase graciosa e de eventual tentativa de conciliação (cânone 1.733 do Código de Direito Canónico) e uma Jurisdição e órgãos jurisdicionais próprios. Nem desconhecer especificamente o art. 1º do Compromisso (da ora agravada), que os vincula, e que consagra que em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano…
23 - Por outro lado, do art. 7º do Estatuto das IPSS aprovado pelo antigo DL nº 519-G2/79, de 29 de Dezembro, não se pode retirar que os órgãos jurisdicionais canónicos não sejam os competentes para dirimir as causas respeitantes à vida interna das instituições da Igreja, das associações constituídas na Ordem Jurídica Canónica a que é reconhecida personalidade civil na ordem estadual. Em primeiro lugar, porque tal norma é muito geral; mesmo a entender-se que se refere apenas a Tribunais do Estado, sobrará sempre um muito vasto campo de aplicação, do disposto nesse artigo, para todas as demais instituições, para além das (ou ressalvando as) pessoas jurídicas da Igreja; e mesmo quanto a estas, sobrará ainda um campo para a sua aplicação no que diz respeito à configuração e julgamento da suas relações jurídicas externas, com outros sujeitos de direito estadual. Não já quanto à sua vida interna, quanto ao provimento dos seus cargos por designação ou eleição.
24 - Em segundo lugar, porque tal norma do Estatuto das IPSS tem que ser lida à luz da ressalva expressa contida no art. 2º nº 3 do próprio Decreto-Lei que aprova tal Estatuto e que pontualiza que …“tratando-se de organizações ou instituições da igreja católica, a aplicação do Estatuto far-se-á com respeito pelas disposições da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 7 de Maio de 1940”. Ou seja, é o próprio Decreto-Lei em causa - que contém a norma muito geral invocada pelos Autores/agravados-que faz, de princípio, a expressa ressalva jurídica quanto à necessidade de ler tal norma e aplicá-la sempre de harmonia e com respeito pelo que resulta do tratado internacional que o Estado Português celebrou (a Concordata). Aliás, a não ser assim, haveria uma potencial ofensa ao art. 8º nº 2 da CRP, como se viu acima.
25 - Por último, se esse artigo 7º estivesse positivamente a determinar uma jurisdição competente, a atribuir por si e autonomamente uma competência judicial, se fosse ele a norma-fundamento, como pretendem os Autores/ora agravados, da atribuição aos tribunais comuns da competência para julgarem a presente questão, então, tal norma, nesse segmento (atributivo de competência) seria também claramente inconstitucional na medida em que editada com invasão da reserva legislativa da Assembleia da República, sem a necessária autorização legislativa da AR (art. 167º alínea j/ da CRP na versão de 1982; correspondente ao actual art. 165º nº 1 alínea p/).
26 - Julgou, pois, bem a douta sentença de 1ª instância que entendeu ser o tribunal comum incompetente. Aliás, na esteira da jurisprudência do STJ colhida no Acórdão de 11.07.1985 ( in BMJ nº 349, pp. 432 e ss.), e nos recentes Acórdão do mesmo STJ de 17.02.2005 (proc. 05B116, publicado no site www.dgsi.pt ) e de 30.07.2004 (proc. 04B4525, publicado no mesmo site www.dgsi.pt ) todos tirados por unanimidade, e onde se conclui que “no caso das misericórdias associações de fiéis constituídas na Ordem Jurídica Canónica, cabe ao ordinário diocesano a aprovação dos respectivos gerentes” e “essa aprovação abrange as irregularidades na admissão de «irmãos», bem como as decorrentes do respectivo processo eleitoral”. E acórdão onde muito bem se explica ainda que “é certo que as Misericórdias se regem pelo respectivo “Compromisso” quanto à convocação, funcionamento e competência deliberativa, e, nos casos omissos, pelo regime previsto nos arts. 12º e 13º, por remissão do art. 69º nº 1 do EIPSS. No entanto, esse nº1 do art. 69º não deixa, a final, de excepcionar “as sujeições canónicas que lhe são próprias”, ressalvando outrossim o nº 3 da aplicação do preceituado no nº 1 “tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social”.
27 - Ora, no douto Acórdão aqui objecto de recurso, pelo contrário, as referências (retiradas do Ac. da RP, de 05.05.2005) a alguns cânones do Código de Direito Canónico, não estão acompanhadas da indicação de que tal Código novo apenas entrou em vigor em 1983 (em 27 de Novembro), e só com ele foi consagrada, como acima se referiu, inovatoriamente a categoria de associações de fiéis privadas, para valer daí para a frente obviamente, sendo as anteriores, as pessoas jurídicas erectas já anteriormente na ordem canónica, em princípio “associações religiosas de fiéis” de carácter público-canónico;
28 - Depois, neste Acórdão agora recorrido, dá-se uma interpretação um pouco distorcida do art. 69º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro. É que, neste art. 69º consagra-se que em primeiro lugar (de precedência jurídica), no regime aplicável às irmandades da Misericórdia, estão “as sujeições canónicas que lhes são próprias”. Com efeito, quando, nesta norma, se consagra que vale “o regime previsto no presente diploma, sem prejuízo de”… significa que a primazia é dada, é reconhecida na própria lei, às sujeições próprias ao direito canónico…
29 - O que, aliás, faz todo o sentido: pois que o substrato daquela pessoa jurídica reconhecida como “instituição de solidariedade social” é, nestes casos (e não o é assim em todas e quaisquer Misericórdias: cfr. art. 95º do mesmo diploma), uma entidade da Igreja, uma pessoa jurídica constituída (“erecta”) no ordenamento canónico pela autoridade canónica competente. Por isso, também, o disposto no art. 71º nºs 1 e 3 do diploma: assegura-se a regra de que a irmandade “pode ser extinta pelo ordinário diocesano”, e ainda a hipótese de a irmandade ser “extinta” enquanto “instituição de solidariedade social” mas continuar a “subsistir” como Irmandade e pessoa jurídica “na ordem jurídica canónica”…
30 - E esta primazia da aplicação do ordenamento canónico leva ainda - quer se trate de associação pública de fiéis, quer se tratasse de associação privada canónica - que é deste ordenamento que hão-de sair os critérios delimitadores, e é na sua jurisdição específica, e aceite pelo Estado português, que tais controvérsias devem ser julgadas.
31 - Por fim, a verdade é que a questão da natureza jurídico-canónica das associações de fiéis (envolvendo o saber se é associação pública ou privada de fiéis) é uma questão eventualmente discutível e carecida de um maior aprofundamento doutrinário do que é superficialmente citado no Acórdão. E testemunho disto mesmo é a existência doutras posições que perfilham a doutrina de que tais Irmandades constituem hoje “associações de fiéis públicas” (no direito canónico), como defende o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (em parecer citado pelo Ac.da Relação), e de insignes canonistas como o Doutor Silvestre Ourives Marques (Eborensia, p. 200 e ss), o Doutor José António Marques e também, entre outros, o catedrático de direito Civil e Canónico Prof. Gaetano Castro, que defende a natureza pública desta associação…. E até podendo dar-se o caso de algumas Irmandades da Misericórdia serem associações canónicas públicas e outras serem associações canónicas privadas…, não tendo todas necessariamente o mesmo formato jurídico-canónico….
32 - Seja como for, é definição, esta, como se disse, que resultará dos próprios critérios jurídicos e científico-dogmáticos do Ordenamento Canónico…, e que tem jurisdição própria para apreciar tais questões - e que o Estado português respeita, e cuja autonomia jurisdicional aceita.

TERMOS EM QUE, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs, o Acórdão recorrido fez errada interpretação das normas supracitadas e nomeadamente do art. 65º - A alínea c) do CPC, arts. 10º e 2º da Concordata, artigos/cânones 232º § 1º, 303º - §3º, 304º - §1º, 323º - §1º e 1.733º do Código de Direito Canónico de 1983 (e também as regras do direito canónico promulgadas pela conferência episcopal portuguesa para as Associações de Fiéis: “Normas Gerais” promulgadas em 15 de Março de 1988, supracitadas), e sobretudo do art. 69º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro (EIPSS), e ainda do art. 7º do DL 519-G2/79, e art. 8º nº 2 da CRP - pelo que deverá ser julgado procedente o presente recurso, revogando - se o douto acórdão agravado, sendo em consequência substituído por decisão que julgue não serem os tribunais comuns, os competentes para a questão dos autos, mas sim a Jurisdição própria eclesiástica, nos moldes prescritos no direito canónico.
E, em abono das sua posições, juntou dois pareceres.

Contra-alegaram os agravados AA, BB e DD, concluindo como segue:
1 - A alínea c) do artigo 65-A do CPC na redacção que lhe foi dada pelo art.º 1.º do DL 38/2003, de 8 de Março, não dá qualquer elemento para a decisão por que a Agravante se expande,
2 - Limitando-se a repetir a prevalência do estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e (outras) leis especiais de força superior,
3 - Pelo que o reconhecimento de que o direito internacional convencional, uma vez recebido, têm força jurídica superior ao direito interno ordinário no sistema jurídico português é mera redundância.
4 - Como se reconhece que um ordenamento jurídico autónomo não é um ramo de direito mas uma unidade hipotalássica.
5 - E mesmo sem aderir a uma tese egológica, que postule a sua total plenitude, o direito canónico, o mais antigo, cultivado e debatido depois do Direito Romano, é verdadeiramente um ordenamento jurídico autónomo,
6 - Que o Estado Português, por força da Concordata de 1940 e agora a de 2004, se obrigou a respeitar.
7 - Mas certamente que dentro da eterna definição e distinção do que é de Deus e o que é de César.
8 - É certo que os limites, por vezes, são difíceis de precisar com exactidão.
9 - E aqui põe-se a questão de definir a caracterização das Irmandades da Misericórdia quer institucional quer funcionalmente.
10 - Que são associações de fiéis é ponto assente,
11 - Já o não sendo a sua natureza de associações públicas ou privadas
12 - E muito menos a sua aceitação como instituições da Igreja Católica.
13 - E mesmo aceitando sem reservas essa caracterização
14 - Se toda a sua actividade é regulada pelo direito canónico ou se o império deste se limita à matéria religiosa,
15 - Deixando de lado a actividade temporal das instituições - a sua gestão e fins assistenciais ..
16 - Aliás, da Concordata não resulta a vinculação da República a regra de competência internacional.
17 - As Misericórdias nasceram à sombra da Igreja, mas nunca foram Igreja.
18 - Os homens bons de Lisboa que reuniram na Sé sob o impulso de Dona Leonor e de Frei Miguel Contreiras e prestaram juramento na Capela da Terra Cota criavam obra de Deus, mas não da Igreja na sua comovente fraseologia.
19 - E se esta não tem hoje estatuto de Misericórdia, estando aliás expressamente excluída do estatuto das IPSS, deve-se à sua absorção pelo Estado na reforma de Mouzinho da Silveira.
20 - As demais, ao longo de mais de cinco séculos (completados em 14 de Agosto de 1998) nunca se consideraram instituições da Igreja.
21 - E se é certo que também os leigos são Igreja e a maior parte, houve sempre um distinguo entre o que depende directamente da hierarquia e aquilo que é decidido por um colectivo, maior ou menor de fiéis.
22 - E a distinção achou sempre acolhimento na nossa lei civil.
23 - O Estatuto das IPSS, presentemente em vigor, dedica todo o seu Capítulo II - ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS, com uma Secção - também II - para as Instituições da Igreja Católica.
24 - As Irmandades da Misericórdia, essas aparecem já no Capítulo III - Secção II - o que claramente significa que o nosso legislador as não considerou organizações da Igreja Católica.
25 - É que assim como os cidadão portugueses, enquanto tais, podem criar no seio do Estado Português instituições de direito privado, que não são obviamente do Estado,
26 - Também os fiéis católicos, enquanto tais, podem criar instituições que não sejam da Igreja,
27 - Sendo coisa completamente diferente associação na Igreja de associação da Igreja.
28 - Obviamente que tal como os cidadãos que somos todos nos temos de conformar com as leis nacionais quando criamos qualquer instituição, tanto substancial como formalmente,
29 - Também os católicos, agindo nessa condição, têm de se conformar com as exigências - materiais e formais - da Igreja.
30 - Daí o art.º 1.º do Compromisso da Agravante falar de uma erecção canónica que a sujeita à autoridade do Ordinário Diocesano, de modo similar ao das demais associações de fiéis.
31 - A erecção canónica é, no entanto, mero requisito de forma que a não qualifica mas que apenas lhe confere personalidade.
32 - Mas logo ali, mesmo artigo do Compromisso, se ressalvam os seus privilégios, um dos quais é o de se administrar por si própria, como decorre há quinhentos anos.
33 - De salientar que secularmente sempre se distinguiu entre organizações da Igreja e organizações de fiéis.
34 - Aliás, contrariamente ao que se alega no doutíssimo arrazoado da Agravante, as associações provadas de fiéis não foram criadas pelo Vaticano II, mas remontam aos primórdios da Cristandade.
35 - As ágapes em que nas catacumbas se distribuíam alimentos e roupas eram objectivamente associações de fiéis e não da Igreja.
36 - E depois por todos os séculos, os homens de honesta vida, boa fama, sã consciência, tementes a Deus, guardadores dos seus mandamentos, mansos e humildes de coração e sobretudo disponibilizados para o serviço do próximo, agindo, embora, no seio da Igreja, não eram instituições desta.
37 - Genericamente, pode mesmo afirmar-se que são muito mais as iniciativas e associações de fiéis do que as instituições da Igreja.
38 - O que se compreende dada a força apelativa da caridade, comparativamente com a qual, todos os actos de virtude, mesmo os superiormente heróicos, nada são.
39 - Assim se expressou Dom António Ferreira Gomes, in "CARTAS AO PAPA".
40 - Invocando o autor a lição de São Paulo, segundo a qual nem uma eloquência que fale línguas de todos os homens e até a dos anjos, nem uma fé capaz de transferir montanhas, nem o dom da profecia, nem a ciência e conhecimento de todos os mistérios, terão qualquer valor, se não houver caridade.
41 - E esta acção caritativa, individual ou organizada, s desenrolou no quadro preconizado na Epístola aos Coríntios,
42 - Sem que, quando colectiva, se tivesse de tratar de iniciativa da Hierarquia ou sua confirmação institucionalizada.
43 - Aliás a erecção da primeira Misericórdia dá-lhe nitidamente a caracterização de associação privada de fiéis, nascida da vontade de fiéis, com o apoio é certo da Coroa (Dona Leonor regia o império, por ausência do País de seu irmão, Dom Manuel) e a aquiescência do Cabido da Sé de Lisboa, que nenhuma intervenção teve, no entanto, sobre o acto de criação.
44 - E as que imediatamente se lhe seguiram, como é o caso da Santa Casa da Misericórdia do Porto nasceram da mesma forma.
45 - Em numerosos itens das suas conclusões repete a Agravante o argumento de que a Igreja pode criar instituições que se regem pela sua lei o que obviamente se não contesta.
46 - A questão todavia é muito mais simples.
47 - A Santa Casa da Misericórdia do Porto foi criada por vontade dos fiéis e a posterior erecção canónica não lhe modifica o estatuto.
48 - Acresce que pública ou privada, a associação só escapa à tutela da lei portuguesa - substantiva ou adjectiva - quando a matéria não for da lei meramente civilística ou administrativa.
48 (1)”. - No caso, ninguém fala de ofensa à integridade da fé e dos costumes ou de desvio nos fins da Instituição.
49 - Está somente em causa a regularidade dum processo eleitoral.
50 - Duma questão entre a Instituição e alguns irmãos,
51 - Fora da sublimidade das coisas espirituais,
52 - Mas da consideração, entre outras coisas, de que uma mesa de voto, aberta doze horas, não pode permitir o exercício do direito de voto a cerca de três mil cidadãos, irmãos com capacidade eleitoral activa.
53 - Trata-se de um caso típico - o mais tipo possível e também o mais simples de definir - da aplicabilidade do art.º 7.º do Estatuto velho, mas que se mantém em vigor, que defere aos tribunais portugueses a competência ratione materiae para discutir questões entre a instituição e seus associados.
54 - A regra in foro utimur pode e deve dar a composição do conflito.
55 - E, mesmo na possibilidade de intervenção de várias ordens (pluralidade de ordens) que nem sempre é o de conflito de ordens, não tem de optar-se pela hetero- integração, naturalmente de afastar quando a aplicável possui todos os elementos para a definição.
56 - Aliás, da Concordata não resulta a vinculação da República a regra de competência internacional.
57 - São assim os tribunais comuns competentes para apreciação da matéria subjacente aos autos.
58 - E de qualquer forma, sempre será de concluir pela impossibilidade de discutir agora a questão da competência do Tribunal que se fixou pelo trânsito da decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar.
Terminam pedindo que se mantenha a douta decisão do Tribunal da Relação do Porto.

Contra-alegou também o recorrido CC, concluindo que:
1 - Por extemporâneas, as alegações, embora mui doutas, da Ilustríssima Agravante, têm de ser desatendidas.
2 - E ainda que assim não seja, julga-se que o trânsito em julgado da providência cautelar, terá fixado carácter definitivo, para a presente causa, da competência dos tribunais comuns.
3 - De qualquer forma, o Acórdão que o presente recurso visa pôr em causa, não viola minimamente a alínea c) do art.º 65-A do CPC (redacção do art.º 1.º do DL 38/2003, de 8 de Março) que, contrariamente ao pretendido pela Agravante, estabelece directamente a competência dos tribunais portugueses para a apreciação da validade das deliberações dos órgãos das pessoas colectivas.
4 - É certo que a Agravante invoca a oposição do porventura estabelecido em tratado.
5 - Mas nenhum tratado refere expressamente o desaforamento.
6 - Não se contesta que o direito canónico seja um ordenamento jurídico autónomo.
7 - E que qua tale tenha tribunais próprios.
8 - Tribunais que o Estado Português tem obviamente de respeitar face à Concordata.
9 - Coisa diferente é esses tribunais invadirem a área de competência ratione materiae dos nossos tribunais.
10 - Sejam ou não as Misericórdias instituições particulares ou públicas de fiéis,
11 - Pois numa e noutra hipótese são instituições de fiéis e não da Igreja.
12 - E da Concordata não resulta a vinculação da República Portuguesa a regra de competência internacional.
13 - Também nunca se contestou nem contesta que seja a Agravante uma associação de fiéis constituída na ordem jurídica canónica,
14 - Ou que o Estado Português tenha - e muito louvavelmente - reconhecido à Igreja e aos seus fiéis plena liberdade para todos os fins na Concordata referidos,
15 - Nomeadamente para o exercício da caridade, a maior de todas as virtudes, já na lição do Apóstolo Paulo.
16 - Tradicionalmente, as nossas misericórdias foram sempre associações de fiéis católicos.
17 - E se algumas saíram daquela órbita foi pela napoleonização das nossas instituições.
18 - Primeiro por Mousinho e seus asseclas, quando foi nacionalizada a Misericórdia de Lisboa, cujo nome é uma excrescência histórica,
19 - Aliás mantida para induzir e conservar em erro a parte menos esclarecida das nossas populações.
20 - Depois, o regime liberal durante toda a Monarquia Constitucional, a legislação de Afonso Costa e o Código Administrativo de Marcelo Caetano consagraram regime dualista que persistiu.
21 - Felizmente, a Misericórdia do Porto, foi sempre e mantém ainda característica de associação de fiéis católicos.
22 - Mas não é, repete - se, uma associação da Igreja Católica.
23 - O nosso legislador distinguiu os dois tipos de instituições no Estatuto das IPSS.
24 - Assim, na Secção II do Capitulo II ocupa - se das Instituições da Igreja Católica;
25 - Reservando para o capitulo III, secção II o regime das Irmandades da Misericórdia.
26 - Daqui parece ter logo de inferir - se que os foros têm de ser diferentes, bem como os regimes básicos,
27 - Certamente que a justiça eclesiástica para os primeiros
28 - E a justiça nacional para o que não for estritamente religioso nas segundas.
29 - A separação da Igreja e do Estado, dando a Deus o que é de Deus e a César o que é de César está assim perfeitamente delimitada.
30 - Dois regimes básicos, dois foros.
31 - E para as IPSS que não sejam instituições da Igreja Católica, stricto sensu, o foro determina - se segundo o art.º 7.° do Estatuto do Estatuto saído do DL 519-02/79, de 29 de Setembro,
32 - Mantido em vigor por todas as subsequentes alterações.
33 - É por ele que tem de aferir-se do foro competente para os presentes autos.
34 - As ressalvas que com pertinácia e afinco a Agravante pretende impor limitam-se às organizações da Igreja Católica que as Misericórdias não são, mau grado as suas sujeições canónicas.
35 - Depender da Igreja não é ser Igreja,
36 - Como depender do Estado não é ser Estado.
37 - E as sujeições canónicas que lhes são aplicáveis são as resultantes dos cânones 305, 321 a 326.
38 - A questão parece reduzir-se assim a uma situação de extrema clareza.
39 - Não é a disciplina eclesiástica, não é a integridade da fé, não é a não mácula dos costumes que estão em causa ...
40 - Mas tão - somente uma questão entre a Misericórdia e seus irmãos,
41 - A propósito duma assembleia geral que o Presidente da Mesa dirigiu em total desconformidade com os estatutos e até a lei portuguesa,
42 - Colocando, para além do mais, alguns irmãos na impossibilidade prática de votar.
43 - É, pois, típica e indiscutivelmente, uma questão que se levantou entre a Irmandade e os seus irmãos.
44 - E é para este tipo de questões que existe o art.º 7.° (o do foro competente) disposição que tem resistido a todas as alterações legislativas de que o nosso sistema tem sido tão pródigo ao longo dos últimos anos.
45 - Repetindo, pois, é certo que se está perante uma questão levantada entre a Instituição e seus associados sobre a matéria que não tem nada de religioso, que não contende com nenhum dos valores que a Igreja tem o direito de preservar.
46 - Os Tribunais Eclesiásticos, pela sua eminente dignidade, têm de ocupar-se de assuntos de maior transcendência nos domínios da fé e dos costumes.
Assim, ou por extemporaneidade das alegações a que se está respondendo,
Ou porque na providência cautelar se tomou já indiscutível a matéria para o caso in judice,
Ou pelo império do art.º 7 do Estatuto das IPSS, mas que se mantém em vigor, tem o presente recurso que improceder, mantendo-se a mui douta e perfeitamente alicerçada decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto.
………………………

VI -
Ultrapassada, por despacho do relator, a argumentação da intempestividade das alegações levantada pelo recorrido CC, a questão que se nos depara consiste em saber se os tribunais civis são competentes para conhecerem da presente causa.
Para sobre ela tomarmos posição, vamos:
Determinar se o decidido, no procedimento cautelar, sobre a competência formou caso julgado que valha nesta acção principal;
Indagar a natureza das misericórdias e, logo a seguir, a natureza da Santa Casa da Misericórdia do Porto;
Obtida esta, seguir para a aferição do seu regime jurídico atentando - sempre na perspectiva do acto eleitoral que se nos depara - no artigo 41.º da Constituição, no regime das Concordatas e no que resulta da lei interna portuguesa.

VII -
o plano factual, damos aqui, brevitatis causa, o que ficou dito supra em I.

VIII -
O procedimento cautelar instaurado foi preliminar relativamente à acção e nele se conheceu, com os limites próprios, de facto e de direito.
A competência do próprio tribunal integra-se no conhecimento de direito, de sorte que vale o comando do artigo 383.º, n.º4 do Código de Processo Civil. Não tem esse conhecimento qualquer influência na acção principal.
Mas, mesmo que, por este caminho, a tal não se chegasse, sempre haveria que atender ao argumento de maioria de razão que resulta do artigo 510.º, n.º 3 do mesmo Diploma Legal. Se a declaração genérica feita no saneador da acção principal sobre a competência não constitui caso julgado mesmo dentro do processo, por maioria de razão, tal decisão tomada, também em termos genéricos, no procedimento cautelar (veja-se folhas 135 do I volume) deve estar despida da força própria daquela figura.

IX -
As misericórdias vêm de muito longe na nossa história. Em 15 de Agosto de 1498 foi fundada a primeira, em Lisboa e, à morte da rainha D. Leonor, em 1525, já havia em Portugal 61.
Com um regime jurídico nem sempre claro, como é bem compreensível, foram atingidas com o artigo 43.º do Decreto n.º 23 de 16.5.1832, tendo a respectiva tutela passado, pelo menos no plano legal, para os perfeitos das províncias. Depois, o artigo 108.º § 8.º do Código Administrativo de 1842, passou a tutela para a esfera do governador civil, que continuou com o artigo 186.º do Código Administrativo de 1878 e com o artigo 220.º, n.º 2 do Código Administrativo de 1886.
O Código Administrativo de 1936-40 incluiu as misericórdias no capítulo dedicado às associações beneficentes ou humanitárias, ficando a criação e administração daquelas reservada às irmandades ou confrarias da Igreja Católica, ainda que os “compromissos” carecessem de aprovação do Governo (artigos 372.º do Decreto-Lei n.º 27.424 de 31.12.1936 e 433.º do Decreto-Lei n.º 31.095, de 31.12.1940).
Com o Decreto-Lei n.º 618/75, de 11.11 foi levada a cabo a nacionalização dos hospitais das misericórdias.
Seguiu-se o Decreto-Lei n.º 519-G/79, de 29.12 que, embora considerando as misericórdias como pessoas colectivas de direito privado do Estado Português, as teve como incluídas na ordem jurídica canónica, com as sujeições canónicas daí resultantes (art.ºs 56.º e 57.º).
Com o Decreto-Lei n.º119/83, de 25.2. – que aprovou o que chamou “Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social” - acabou-se com a distinção entre irmandades e misericórdias, reconheceram-se ambas como “constituídas na ordem jurídica canónica” (artigo 68.º, n.º 1) e precisou-se que se lhes “aplica directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhe são próprias.” (2)ssa para o presente caso.
Paralelamente a esta evolução, situada no direito interno português, caminhou, vinda também de muito longe no tempo, toda uma realidade canónica que teve como objecto as misericórdias.
Actualmente, o Código de Direito Canónico de 1983, dedica os cânones 298 e seguintes às “Associações de Fiéis”, precisando logo que “existem na Igreja” associações distintas, incluindo as destinadas a actividades de apostolado, contando-se entre elas, as que visam o exercício de obras de piedade ou de caridade.
Dos cânones 305.º e 323 resulta que todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente. O que é reafirmado no artigo 11.º das “Normas Gerais para Regulamentação das Associações de Fiéis”, aprovadas pela Conferência Episcopal Portuguesa e publicadas para entrarem de imediato em vigor em 15.3.1988, sujeitando a tais normas gerais – agora já no artigo 116.º § 1.º - todas as associações de fiéis, quer existentes antes do actual Código de Direito Canónico, quer surgidas depois. Resultando explicitamente do § 2.º do artigo 41.º que as associações de fiéis podem ser, no plano civil, instituições particulares de solidariedade social.
E, reunida em 15.11.1989, em Fátima, a Conferência Episcopal emitiu o que chamou “Declaração Conjunta dos Bispos sobre a dimensão pastoral e canónica das Misericórdias Portuguesas”, constando do seu ponto 4 o seguinte:
“Nesta conformidade e tendo em conta: que a Autoridade Eclesiástica interveio, habitualmente, na existência e acção das Irmandades da Misericórdia através de actos jurídicos; que as Misericórdias têm, na sua maior parte erecção canónica e Estatutos aprovados pelo Ordinário diocesano; que mantêm culto público em igrejas e capelas próprias com capelão nomeado; que continuam a dedicar-se a actividades de pastoral social de grande alcance; que muito há a esperar de cada Santa Casa da Misericórdia e do seu conjunto, bem como da acção das Misericórdias Portuguesas, a Conferência Episcopal Portuguesa, sem esquecer a fisionomia própria das Misericórdias, criada através da história, e desejando que elas a conservem, considera as Misericórdias Portuguesas Associações Públicas de Fiéis, com os benefícios e exigências que lhes advêm do regime do Código de Direito Canónico, especialmente nos cânones 301 e seg.s e 312 e seg.s.”
Este texto encerra já uma tomada de posição sobre a natureza pública ou privada das misericórdias enquanto associações de fiéis, discussão que, se conduzisse à natureza privada, levaria as autoridades da igreja – segundo alguns autores - a um regime despido de jurisdicionalidade. Limitar-se-iam, no dizer de Vítor Melícias (Natureza Jurídica das Misericórdias, Separata de “As Associações na Igreja”, 177) a “uma genérica vigilância da autoridade eclesiástica”.
A natureza de associações públicas foi acolhida e serviu de fundamento ao Supremo Tribunal da Signatura Apostólica (a mais alta instância judicial canónica), o qual, seguindo jurisprudência anterior que ele próprio interpretou, veio, na “Sentença Definitiva” de 30.4.2005, afirmar:
“De facto, o reconhecimento da Irmandade (de Montargil) como instituição privada de solidariedade social, em direito civil, de modo algum impede que a mesma associação tenha a natureza de associação pública, no Direito Canónico.
O reconhecimento da associação, segundo o Direito civil não inclui a perda da sua natureza canónica.
Não pode, portanto, afirmar-se que “não obstante a erecção canónica a SCMM (Santa Casa da Misericórdia de Montargil) deve ser considerada como associação privada. Mais: tendo em conta a sua história e natureza canónica, a mesma na Igreja, deve ser tida como associação pública.”

X -
A Santa Casa da Misericórdia do Porto vem também de muito longe no tempo, tendo estado sob a tutela do Bispo do Porto desde a Fundação até ao já referido Código Administrativo de 1842.
No artigo 1.º do seu “Compromisso” (denominação própria para os seus estatutos, conforme n.º 2 do artigo 68.º do DL n.º 119/83) – e à semelhança da de Montargil a que alude a citada “sentença definitiva” - diz-se “constituída na Ordem Jurídica Canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, enformado pelos princípios da doutrina e moral cristãs.”
Acrescentando já no número 2 que:
“Em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis, ressalvados os seus privilégios.”

XI -
De tudo o que vimos referindo, podemos extrair uma conclusão:
A Santa Casa da Misericórdia do Porto, como misericórdia e atento o seu compromisso, é uma instituição integrante da ordem jurídica canónica como associação de fiéis pública, que visa – enformada pelos princípios da doutrina e moral cristãs – satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico, tendo, na ordem jurídica civil, a natureza de instituição particular de solidariedade social.

XII -
Obtida esta precisão conceptual, há primeiro que ver se o respectivo regime jurídico – na vertente, que nos interessa, da competência ou incompetência dos tribunais civis para conhecimento da impugnação duma assembleia geral em que se procedeu a eleição dos corpos gerentes – se pode retirar da Constituição da República Portuguesa.
Acima de tudo, dela, por ser o conjunto de normas que está no topo do nosso ordenamento jurídico.

Nos termos do artigo 41.º, n.º 4:
“As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”.
Está aqui uma emanação, em duas vertentes, da inviolabilidade de consciência, de religião e de culto.
A primeira consiste na separação entre as igrejas e outras comunidades religiosas, por um lado, e o Estado por outro;
A segunda, concatenada com a primeira, cifra-se na liberdade de organização e no exercício das funções e do culto que assistem àquelas.
A propósito deste regime de liberdade e seus limites, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, anotação a este artigo) acentuam a “não ingerência do Estado na organização das igrejas e no exercício das suas funções de culto”, com ressalva que aqui não nos interessa e Jorge Miranda vai mesmo mais longe, admitindo apenas os limites resultantes do artigo 29.º, n.º 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (A Concordata e a Ordem Constitucional Portuguesa, in A Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, ed. da Almedina, 79).

Mas, à latíssima possibilidade conferida às igrejas e confissões religiosas de se organizarem pode ser oposto o regime de liberdade que também, quanto a este ponto, enforma o Estado Português.
Podendo, então, dar-se o caso – sempre pensando no presente processo - de haver instituições que, porque prosseguem fins não só de culto religioso, como assistenciais, possam oscilar entre um lado e outro, de acordo com critérios puramente políticos ou até estarem sujeitas a regimes jurídicos híbridos.
Ultrapassadas historicamente as agudezas duma relação nem sempre boa entre o Estado e a Igreja Católica, foram mesmo concretizados acordos reguladores dos limites próprios daquele e desta. Que têm implicação manifesta nestes casos em que as instituições podem assim oscilar.
Temos, pois, aqui uma consensualidade que vai preencher o que de vazio fica com a interpretação daquele artigo da Constituição.
Este não alcança, portanto, o regime jurídico das misericórdias, antes e apenas coloca o Estado Português e a Santa Sé em pé de igualdade para livremente acordarem nesse mesmo regime jurídico.
Não é este preceito da Constituição que proporciona a solução para o nosso caso, valendo somente para se considerar aberto o caminho que foi percorrido com a celebração das Concordatas.
Como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho (ob. o loc. citado) “A separação entre o Estado e as igrejas e confissões religiosas não impede, em termos absolutos, a celebração de concordatas ou convenções entre um e outras, para regular as respectivas relações institucionais e concretizar alguma especificidade que possa haver lugar…”

XIII -
No atentar nas Concordatas, interessa-nos a Constituição Portuguesa sob outro prisma.
Reportamo-nos ao artigo 8.º, n.º 2 segundo o qual:
“As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.”
Deste preceito retirou o Tribunal Constitucional a interpretação de que “a normas do direito internacional convencional detêm primazia na escala hierárquica sobre o direito interno anterior e posterior” - Acórdãos n.ºs 118/85, 409/87 e 218/88, no BMJ n.ºs 360, 501, 370, 175 e 380,183, respectivamente.
Mais referindo aquele tribunal nestes arestos que:
“Uma norma de direito interno que contrarie uma convenção internacional em vigor na ordem interna contraria igualmente o citado princípio constitucional da primazia do direito internacional convencional, não podendo deixar de haver-se por prevalecente o vício da inconstitucionalidade, que absorve, consumindo-o, o vício da ilegalidade.”
Não nos oferece dúvida, por outro lado, que as Concordatas que Portugal assinou com a Santa Sé estão compreendidas naquele conceito de “convenção internacional” e que vigoram na ordem interna. Aliás, se dúvidas houvessem, a sua simples leitura dissipá-las-ia.
Entendemos, então, acolher sem qualquer reserva, as palavras de Jorge Miranda (Estudo citado, agora a páginas 69) quando afirma, abordando matéria relativa às Concordatas, que:
“Consequentemente, a emissão de norma interna contrária a norma internacional não constitui apenas o Estado em responsabilidade internacional; implica também a não obrigatoriedade da norma interna, por ineficácia (não propriamente por invalidade, pois o tratado não é fundamento de validade, mas tão só um obstáculo à sua eficácia).” Prosseguindo o mesmo autor, em afirmação na qual também nos louvamos, que compete aos tribunais em geral fiscalizar a contradição, atento o princípio que resultava do artigo 207.º da Constituição e agora está plasmado no artigo 204.º. Ideias que também são referidas por Vasco Pereira da Silva, em “O Património Cultural da Igreja, inserto na obra citada da Almedina, a páginas 124 e seguintes.(3)

Temos, então e sempre pensando no que especificamente nos importa, uma hierarquia:
Primeiro, a Constituição da República;
Depois, as Concordatas entre Portugal e a Santa Sé (abstraindo agora da questão de saber qual delas deve ser tida em conta e de determinar se o seu não acatamento constitui também ofensa à própria Constituição);
Em terceiro lugar, as normas internas portuguesas.

XIV -
Esta hierarquia, na sua vertente relativa ao cotejo entre as normas da Concordata e as normas internas é, aliás, afirmada pelas próprias leis internas.
É o caso do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25.2:
“A aplicação das disposições do presente Estatuto às instituições da Igreja Católica é feita com respeito das disposições da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940.”
Assim como o artigo 87.º n.º 1 da Lei de Bases da Segurança Social (n.º 32/2002, de 20.12), quando, reportando-se às instituições particulares de solidariedade social, ressalva a respectiva natureza, autonomia e identidade.
Trata-se, nestes casos, mais do que uma necessidade sob o ponto de vista técnico-jurídico, duma manifestação da sã e pacífica convivência que a separação constitucional não preclude, entre o Estado e a Igreja.

XV -
A hierarquia de que vimos falando entre as normas constantes das Concordatas e as normas de direito interno português leva-nos a atentar no teor daquelas.
E, curiosamente, ao afastamento da sua relevância, num estrito campo.
Expliquê-mo-nos:
De acordo com os artigos 3.º e 4.º da Concordata de 1940 a Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas de Direito Canónico e constituir dessa forma associações ou organizações que se administram livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica.
Mas acrescenta-se:
“Se, porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para essas associações ou corporações…”
Por sua vez, a Concordata de 2004 também estabelece que:
“As pessoas jurídicas canónicas, reconhecidas nos termos do artigo 10.º, que, além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português…”
Ou seja, é o próprio regime concordatário, que, olhado em primazia, conduz à aplicação do direito interno português no que concerne à actividade assistencial das instituições. Não é este que prevalece relativamente àquele ou que se coloca a par dele, mas aquele que determina, em plano superior, a aplicação deste.

XVI -
Só que, no próprio artigo 4.º da Concordata de 1940 precisa-se que o regime instituído para o direito português para estas associações se tornará efectivo através do Ordinário competente.
Cremos estar aqui uma estatuição relativa à incompetência dos tribunais civis para impor o próprio “regime instituído pelo direito português”. Não quiseram os outorgantes o normal, ou seja, que fossem os tribunais civis portugueses a velarem pelo cumprimento do direito interno nacional.
E, lembrê-mo-nos sempre, estamos em plano hierarquicamente superior ao das normas de direito interno português.
Assim, o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 519-C2/79 de 29.12. – que se mantém em vigor por força do disposto no artigo 98.º, al. b) do já falado Decreto-Lei n.º 119/83, de 25.2 - e que estatui que compete aos tribunais conhecer das questões que se levantem entre as instituições e os seus associados tem de ceder – na sua interpretação, mais conforme, ainda que não expressa, de que se reporta aos tribunais civis – perante aquela disposição da Concordata que atribui competência ao Ordinário.
Do mesmo modo, se, interpretando o próprio Decreto-Lei n.º 119/83, chegássemos à competência dos tribunais civis, teríamos de a afastar porquanto, já em plano superior, a questão estava resolvida. A expressão “Sem prejuízo da tutela do Estado”, do artigo 48.º e, bem assim, o artigo 69.º, têm de ser interpretados no sentido de não beliscarem a competência atribuída ao Ordinário pela Concordata. (Cfr-se, a este propósito, as referências que faz Silvestre Ourives Marques, na mencionada publicação da Almedina, páginas 107).
Em contrário, a parte final daquele artigo 48.º deve ser entendida como reforçadora do que já consta daquele artigo 4.º da Concordata, precisando um caso de intervenção das autoridades eclesiásticas. Precisamente a da aprovação dos corpos gerentes das instituições.

XVII -
Esta nossa construção complica-se, no entanto, com a entrada em vigor, em 18.12.2004 (4), da Concordata actualmente vigente.
Nela se continua, para além do regime de liberdade de organização em geral, o regime de livre constituição, modificação e extinção de pessoas jurídicas canónicas, com reconhecimento da personalidade jurídica por parte do Estado Português.
Tendo-se também atentado nas pessoas jurídicas canónicas que, além dos fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade. Estatuiu-se, em consonância com o que vinha da anterior concordata, que desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza.

XVIII -
Mas existe uma diferença.
Desapareceu a referência do artigo 4.º da Concordata de 1940 quanto à imposição do direito português pelo Ordinário competente. Pelo contrário, ficou estatuído, no artigo 11.º, que, regendo-se as pessoas jurídicas canónicas pelo direito canónico e pelo direito português, cada um é aplicado pelas respectivas autoridades.
Está em causa a violação do direito canónico: será chamada a intervir a autoridade da Igreja. Está em causa a violação do direito interno português : recorre-se aos tribunais civis.

XIX -
Levantar-se-ia, então, a questão de saber se os autores invocam a violação do direito canónico ou do direito interno português.
O que eles invocam é a violação do compromisso e este situa-se no âmbito do direito canónico, pois até na parte final se refere, em letra manuscrita, que “estão conformes às Normas de Direito Geral da Igreja e do Regulamento Geral das Associações Religiosas”.
Manteve-se, pois, para este caso, a competência do Ordinário.

XX -
De qualquer modo, para o caso de se entender que os autores, numa perspectiva indirecta relativa ao modo de funcionamento das assembleias gerais das associações de acordo com o direito interno português, também invocam a violação deste, sempre haveria a considerar que:
A Concordata de 1940 deu lugar à de 2004 em 18.12.2004.
A deliberação da assembleia geral que se ataca teve lugar em 28.11.2004.
O artigo 65.º, n.º 1 do Código de Processo Civil começa por ressalvar o que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais.
Fica, assim, novamente depositada no teor das Concordatas a resolução do conflito entre o Ordinário competente querido pela de 1940 e as autoridades civis que, nesta hipótese, poderiam ser chamadas.
Não se trata da aplicação do princípio da lei reguladora da competência emergente do artigo 22.º da LOFTJ. Não houve sucessão de competências de tribunais, em ordem a saber-se qual deles deve ser o competente. Trata-se antes de saber quem tinha a competência para fazer observar o direito que se invoca na petição inicial como violado.
E, assim sendo, entendemos que a competência há-de ser encontrada na disposição concordatária vigente ao tempo do acto que se ataca.
Segundo os autores, em 28.11.2004, foram violadas normas jurídicas cuja observação, porque vigorava a Concordata de 1940, havia de ser tornada efectiva pelo Ordinário competente. É junto dele que terão de ir.
Noutro entendimento – só admissível, aliás, dando de barato a extensão supra referida - estariam as autoridades civis portuguesas a invadir o que era da competência de outrem, a impor um direito quando não lhes cabia a elas impô-lo. Uma inaceitável retroactividade.

XXI -
A competência do Ordinário diocesano para casos com grandes semelhanças ao nosso corresponde, aliás, a orientação deste tribunal, plasmada nos Acórdãos de 11.7.1985 (BMJ 349, 432), 27.1.2005 e 17.2.2005, estes dois podendo ver-se em www.dgsi.pt. Ainda que não corresponda a orientação uniforme da nossa jurisprudência.

XXII -
Nestes termos, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão da Relação para subsistir a de primeira instância.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 26 de Abril de 2007

João Bernardo (relator)
Oliveira Rocha
Oliveira Vasconcelos

(1) Na enumeração da recorrente há dois números “48”.
(2) Este Decreto-Lei ressalva, logo no artigo 2.º, que “O Estatuto não é aplicável à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, mas esta ressalva – que, corresponde, aliás, ao que já vem de muito longe quando se estatui sobre as Misericórdias - não nos interessa para o presente caso
(3) A primazia das Concordatas é também afirmada, relativamente às normas constantes do Código de Direito Canónico, no cânone 3 deste.
(4) Artigo 33.º da própria Concordata e Aviso n.º 23/2005 do MNE, publicado no Diário da República de 26.1.2005.

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