domingo, 30 de janeiro de 2011

A NATUREZA JURÍDICA DAS MISERICÓRDIAS É MATÉRIA DA MAIOR RELEVÂNCIA

Após a promulgação, pela CONGREGATIO PRO EPISCOPIS, em 17 de Junho de 2010, do Decreto Geral para as Misericórdias, aprovado pela Conferência Episcopal Portuguesa em 23 de Abril de 2009, os "dirigentes" da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) entenderam por bem dar início a processo de acesa conflitualidade e de rejeição visando a revogação do citado Decreto.
Do muito que esses "dirigentes" disseram e mandaram publicar já aqui se deu o necessário eco. Ficou claro que alguns "dirigentes" da UMP protagonizaram o anúncio do corte de relações com a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), em contraste com a disponibilidade, manifestada pela CEP, para manter abertos todos esses canais. Nem se coibiram de anunciar, para o dia seguinte, a decisão do ConselhoNacional (ver CM).
Importa, pois, reflectir sobre esta matéria, já que a importância da mesma é da maior relevância e de superior interesse para as Misericórdias Portuguesas. É de tal foma importante para as Misericórdias que a sua abordagem obrigaria, quem dirige a UMP, a abrir e manter abertos canais de informação, de diálogo e de reflexão com as Misericórdias.
Mas foi, exactamente, ao contrário.
É que tratando-se de matéria de primeira importância institucional, sim proque não pode ser indiferente, às Misericórdias o conhecimento da matriz pela qual se regulam, não lhes poderia ter sido negado o acesso a informações importantíssimas, nem deveria ter sido impedido qualquer iniciativa de reflexão sobre esta matéria e deveriam ter sido ouvidas antes de ter sido anunciado, por alguns "dirigentes" da UMP o corte de relações com a CEP.
Talvez valha a pena reflectir da(s) razão(ões) porque se chegou a actual situação.
É isso que nos propomos fazer numa séria se escritos a que hoje damos início.
Para quem esteja há menos tempo ligado às Misericórdias e não conheça a origem de tudo isto importa divulgar alguns factos.
Importa também referir que a definição da natureza jurídica das Misericórdias jamais foi uma questão pacifica e/ou consensual. Ao longo da história das Misericórdias esta questão foi abordada, sobretudo por questões de poder e tutela à qual o poder está, intimamente, ligado. Só para exemplificar que esta matéria não foi pacífica nem consensual bastará aqui e agora referir que está publicada uma obra intitulada "SITUAÇÃO JURÍDICA DAS MISERICÓRDIAS PORTUGUESAS - Tese de Doutoramento" (de meados do séc.XX) da autoria do Dr. J. Quelhas Bigotte, reeditada em 1994. Recomenda-se, vivamente, a sua leitura atenta a quem se interessa, verdadeiramente por esta matéria.
Será que os "dirigentes" da UMP que repudiam a iniciativa da CEP já leram esta obra? Pelo que têm dito e escrito poder-se-á concluir que a desconhecem. Tal como demonstram deconhecer dois opúsculos já aqui publicados intitulados "As Misericórdias são Associações Privadas de Fiéis Cristãos" da autoria do Dr. J. Quelhas Bigotte e "Natureza Jurídica das Irmandades da Misericórdia - São Associações de Fiéis Públicas ou Privadas", da responsabilidade do Secretariado Nacional, constituído pelo Dr. Virgílio Lopes, Dr. Fernando Caldas e Dr. Dinis da Fonseca ?"
Mas vamos começar pelo princípio. E este princípio que culminou com a publicação na revista Lumen - Ano 71 - Série III - n.º 4 - Julho/Agosto 2010, do Decreto Geral para as Misericórdias, consideramo-lo a iniciativa do Senhor Bispo de Faro de intervir na Santa Casa da Misericórdia de Moncarapacho, quando, esta Misericórdia, na década de 80 do Século XX, decidiu alienar uma parcela de terreno que lhe pertencia de pleno direito. Foi aqui que, verdadeiramente, teve início (ou terá sido reinício), no pasado recente, o diferendo interpretativo sobre a natureza jurídico canónica das Misericórdias.
Um parêntesis para referir que há muito que a UMP deveria ter tomado a iniciativa de mandar escrever (para que constasse) um Relatório sobre os factos e escritos que foram acontecendo e registados ao longo de um período de tempo que já ultrapassou os 20 anos.
E haverá alguma razão para que a UMP devesse ter tomado essa iniciativa?
Claro. É que a natureza jurídica das Misericórdias é matéria de primeira importância. É conhecendo qual é a verdadeira natureza das Misericórdias que se pode agir em conformidade. É que para a acção das Misericórdias, em toda a sua plenitude, não lhes é indiferente a natureza jurídica quer seja vista no âmbito do Direito Canónico quer seja vista no âmbito do Direito Civil.
Para estimular a curiosidade deixaremos aqui a seguinte questão: será que definida a natureza pública das Misericórdias no âmbito do Direito Canónico pela CEP e promulgada pela Santa Sé, estas serão menos públicas no âmbito do Direito Civil?
Para aguçar ainda um pouco mais a curiosidade diremos o seguinte.
O Decrero-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro estabelece que as Irmandades de Misericórdia são instituições de utilidade pública. Mas, ainda hoje, há juristas que defendem que estas mesmas Irmandades são instituições de utilidade pública administrativa regulando a sua acção o Código de Direito Administrativo, o qual ao que esses juristas afirmam, terá algumas disposições ainda em vigor e aplicáveis às Misericórdias.
Mas importa ainda referir que os bens das Misericórdias (nomeadamente edifícios financiados pelo Estado - entenda-se Governo) não podem ser alienados sem o consentimento, ou melhor, sem a devida e competente autorização do membro do Governo ou do próprio Conselho de Ministros.
Mas há ainda uma outra questão. É que no âmbito da aplicação do Código Penal, os dirigentes das Misericórdias, são para todos os efeitos considerados funcionários públicos.
Estas são algumas das razões que me levaram a suscitar a questão: as Misericórdias são, actualmente, de natureza mais pública no âmbito do Direito Canónico ou no âmbito do Direito do Estado Português?
Fica a questão que não é assim de tão pouca importância como a que têm feito querer quem, ainda, é "dirigente" da UMP.
Continuando este nosso início de reflexão a partilhar com todos quantos se interessam e gostam das Misericórdias, somos obrigados a apresentar mais uma outra questão: porque será, ou qual será a razão, ou qual será o interesse que levou o anterior e o actual "presidentes" do SN da UMP a impedir (ou melhor dizendo recusar a divulgação ou a esconder das instituições destinatárias) as Misericórdias de conhecerem o Parecer pago pela União das Misericórdias Portuguesas (UMP), intitulado "Parecer sobre a Natureza Jurídica das Misericórdias Portuguesas" e elaboradao pela Universidade de Navarra, Pamplona 5 de Agosto de 1990?
Já que estamos abordadndo a questão das publicações do período inicial desta matéria importa saber que o Dr. João Marado foi um íntimo colaborador do Dr. Virgílio Lopes, pessoa também muito interessada nesta problemática da natureza jurídico-canónica das Misericórdias fez o seu doutaramento em Direito Canónico sobre a natureza jurídica das Misericórdia tendo concluído pela sua natureza de associações privadas, a qual foi aprovada com Lauda. Porque razão o anterior e o actual "presidentes" do SN da UMP não promoveram a sua divulgação junto das Misericórdias ? Nem ao menos falaram ou falam na existência de tão importantyes estudos?
Dá que pensar.
Ficaremos hoje por aqui. Em breve regressaremos a esta matéria, com o único objectivo de contribuir para a formação dos actuais e futuros Dirigentes das Misericórdias Portuguesas.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

OS FACTOS DESTA SEMANA JUSTIFICAM A (RE)PUBLICAÇÃO

Os políticos e a lei de Gresham
Nos anos recentes, muito se tem falado de uma certa degradação da qualidade dos agentes políticos em Portugal, da sua credibilidade, competência e capacidade para conduzir os destinos do país. Independentemente de ser de facto assim, o certo é que há hoje uma forte percepção da parte da opinião pública de que, em geral, a qualidade dos agentes políticos tem vindo a baixar.

Para isso tem contribuído, entre outros factores, o afastamento crescente das elites profissionais, dos quadros técnicos qualificados da vida político-partidária activa. Os políticos profissionais de valor, com uma carreira seriamente estruturada, ficam, assim, mais mal acompanhados.

Num documento da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), de Fevereiro de 2002, falava-se da «centrifugação de alguns dos melhores valores do pessoal político e da gestão superior do Estado e incapacidade de atrair novos valores, nomeadamente entre os mais jovens» como um dos sinais preocupantes da deterioração do nosso sistema político.

Três razões podem ser avançadas para explicar a atitude de afastamento das elites profissionais da vida político-partidária.

Por um lado, a sua convicção de que, fazendo Portugal parte da União Europeia, não há risco de retrocesso do regime democrático de tipo ocidental em que vivemos.

Por outro, o convencimento das elites de que a participação activa na actividade política tem custos elevados - custos materiais e de exposição pública - e de que podem influenciar as decisões políticas de outra forma - através de contactos pessoais, associações ou corporações de interesses.

Mas talvez a razão mais forte do afastamento das elites resida na ideia de que, nos dias de hoje, o mercado político-partidário não é concorrencial e transparente, de que existem barreiras à entrada de novos actores, de que não são os melhores que vencem porque os aparelhos partidários instalados e os oportunistas demagógicos não olham a meios para garantir a sua sobrevivência nas esferas do poder.

A ser assim, a lei da economia, conhecida pela lei de Gresham, poderia ser transposta para a vida partidária portuguesa com o seguinte enunciado: os agentes políticos incompetentes afastam os competentes. Segundo a lei de Gresham a má moeda expulsa a boa moeda.

O afastamento das elites profissionais (e também das elites culturais) da vida político-partidária, ao contribuir para a deterioração da qualidade dos agentes políticos, prejudica a credibilidade das instituições democráticas e a ética de serviço público, aumenta os erros dos decisores políticos face aos objectivos de bem-estar social definidos e favorece os comportamentos políticos em função de interesses particulares ou partidários, em lugar do interesse nacional. Daqui resulta menos desenvolvimento e modernização do país, mais injustiças sociais e maior desencanto dos cidadãos em relação à democracia.

Já em Outubro de 2001, num documento divulgado pela Associação Empresarial de Portugal, se manifestava preocupação pelos custos da «mediocridade na actividade política».

Sendo assim, uma questão que tenderá a assumir relevância crescente para a qualidade da nossa democracia e para o desenvolvimento e modernização do país será a de como trazer de volta à vida político-partidária pessoas qualificadas, dispostas a servir honestamente a comunidade.

Nesse sentido, interessaria desenvolver acções visando o reforço da transparência e democraticidade na actividade partidária, o aprofundamento da educação para a cidadania activa e a melhoria da informação sobre a actuação dos agentes políticos. Tal como interessaria promover debates sérios e aprofundados sobre as políticas públicas e ter a coragem de aumentar a remuneração dos agentes políticos, por forma a atrair quadros de reconhecido valor e que vivem dos rendimentos do trabalho.

Se nada for feito, é provável que a situação continue a degradar-se e só se inverta quando se tornar claro que o país se aproxima de uma crise grave. Então, algumas elites poderão chegar à conclusão de que está em causa o seu próprio futuro e dos seus familiares e que os custos de alheamento da actividade político-partidária são maiores dos que os custos de participação.

Mesmo assim, haverá que contar com a resistência à mudança dos aparelhos partidários instalados, o que pode levar ao arrastamento da situação.

Do ponto de vista nacional, seria desejável que o país não descesse até ao ponto de crise e que a inversão da tendência ocorresse o mais cedo possível.

Face aos sinais preocupantes que têm vindo a emergir nos mais variados domínios, do sistema educativo ao sistema de justiça, da administração pública à economia, penso que é chegado o momento de difundir na sociedade portuguesa um grito de alarme sobre as consequências da tendência para a degradação da qualidade dos agentes políticos, de modo a que os portugueses adoptem uma atitude mais participativa e exigente nas suas escolhas eleitorais e as elites profissionais acordem e saiam da posição, aparentemente cómoda, de críticos da mediocridade dos políticos e das suas decisões e aceitem contribuir para a regeneração da actividade política.

Por interesse próprio e também por dever patriótico, cabe às elites profissionais contribuírem para afastar da vida partidária portuguesa a sugestão da lei de Gresham, isto é, contribuírem para que os políticos competentes possam afastar os incompetentes.

Recordo que Portugal, desde 2001, tem vindo sistematicamente a afastar-se do nível de desenvolvimento da vizinha Espanha e da média da Europa dos quinze e que esta tendência irá manter-se no futuro, de acordo com as previsões para 2005-06 recentemente publicadas pela Comissão Europeia. Até quando?

Artigo de Cavaco Silva
In "Expresso", de 27 de Novembro de 2004

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

sábado, 15 de janeiro de 2011

MISERICÓRDIAS: Associações Privadas ou Públicas ?

98/09.6TBSRT.C1

Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL JUDICIAL
TRIBUNAL ECLESIÁSTICO
CONCORDATA
MISERICÓRDIAS

Data do Acordão: 23-11-2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERTÃ
Texto Integral: S

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.66, 101, 105, 493, 497 CPC, 483, 496 CC, DL Nº 519-G2/79
DE 29/12, DL Nº 119/83 DE 25/2, CÓDIGO CANÓNICO DE 1984,
CONCORDATA DE 2004

Sumário: I- Face às normas dos artigos 44.º a 51.º, 68.º a 70.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, e artigos 1.º, 8.º a 12.º da actual Concordata (2004) celebrada entre o Estado Português e a Santa Sé, uma Misericórdia, sendo, a Ré ( Irmandade da Santa Casa da Misericórdia ), uma pessoa jurídica constituída na ordem jurídica canónica, rege-se pela ordem jurídica portuguesa nos aspectos atinentes ao desenvolvimento da sua actividade de prossecução de «fins de assistência e solidariedade» e pela ordem jurídica canónica quanto aos restantes aspectos da sua actividade, desde que os mesmos se subsumam a normas da ordem jurídica canónica.

II - Os tribunais judiciais não têm competência material para apreciar a legalidade da exclusão dos Autores como associados da Ré Misericórdia, decidida pela respectiva mesa da assembleia geral, com fundamento no facto da autoridade eclesiástica ter considerado e emitido declaração no sentido dos Autores, seus associados, «haviam abandonado a comunhão eclesiástica» e «segundo o teor do Cân. 316, 1 e 2, deverem ser demitidos da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia».

III - Mas já têm competência material para julgarem um pedido de indemnização por danos não patrimoniais fundados em eventuais actos ilícitos conexos ou derivados dessa decisão de exclusão, na medida em que tais factos se subsumem à previsão normativa dos artigos 483.º e 496.º do Código Civil.


Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):
*
Recorrentes (Autores) J (…), residente em (…) .; e
……………………………A (…), residente em (…) Fundada.

Recorridos (Réus)…….Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de .;

……………………………Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de .;

……………………………I (…) Provedora da Santa Casa da Misericórdia de .;

……………………………C (…), Vice-Presidente da Santa Casa da Misericórdia de .;

……………………………A (…), Tesoureiro da Santa Casa da Misericórdia de .;

……………………………T (…), Secretária da Santa Casa da Misericórdia de .;

……………………………A (…), Secretário da Santa Casa da Misericórdia de .;

……………………………I (…), Directora do Lar da Santa Casa da Misericórdia de .;

…………………………M (…), Directora do Lar da Santa Casa da Misericórdia de .; e

………………C (…), Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de ..

*
I. Relatório
a) Os Autores instauraram a presente acção declarativa, com processo ordinário, com o fim de obterem a anulação da deliberação tomada pela Mesa da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de . (doravante designada apenas por Misericórdia) no dia 09 de Setembro de 2008, constante da acta desta entidade com o n.º 299, que consistiu, em síntese, na exclusão dos Autores como membros da Associação Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ..

Pedem, em segundo lugar, a condenação dos Réus a pagarem-lhes uma indemnização de €25 00,00 euros, a cada um deles, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais.

Baseiam esta pretensão, em resumo, no facto de terem sido demitidos do universo dos associados da Ré Misericórdia apenas pelo facto de terem reagido através dos tribunais civis, contra o que entenderam constituir violação das regras eleitorais para a constituição da Mesa da Misericórdia, o que fizeram através da acção n.º ...-, com vista a obterem a anulação do acto eleitoral ocorrido em 2005.

Na sequência desta acção, os Autores acabaram por instaurar outros processos em tribunal, com o fim, segundo eles, de assegurarem a eficácia da mencionada acção, pois foram marcados posteriormente outros actos eleitorais, pelo que, caso estes outros actos posteriores não fossem impugnados, acabariam por produzir o efeito de tornar inútil a primeira acção, o que levou à dedução, em cascata, das providências cautelares ...-, com vista a impedir as novas eleições marcadas para 29 de Outubro de 2006; a providência cautelar n.º ..., a que se seguiu a acção n.º ...; a providência cautelar n.º ..., destinada a impedir os efeitos de outras eleições marcadas para 26 de Novembro de 2006; a providência cautelar n.º ... destinada a definir judicialmente o conceito de «pleito» a que alude a al. c), do artigo 40.º, do Compromisso (estatutos) da Ré Misericórdia, bem como a providência cautelar n.º ..., destinada a suspender a produção de efeitos da deliberação da Ré Misericórdia de 14 de Outubro de 2007.

Por terem reagido desta forma, usando os tribunais judiciais, os Autores acabaram por ser excluídos da Misericórdia através da apontada deliberação de 09 de Setembro de 2008, constante da acta desta entidade com o n.º 299, quando é certo que no âmbito dos processos anteriores acima identificados, os tribunais judiciais entenderam serem competentes para dirimir tais questões entre Autores e Misericórdia, sem que esta Ré tivesse colocado em questão, através de recurso, a competência que os tribunais judiciais entenderam assistir-lhes.

Em resumo, os Autores pedem a anulação da aludida deliberação com base em duas ordens de razões:

(1) Por terem sido excluídos do seio da irmandade unicamente por haverem reagido através dos tribunais civis contra violações ocorridas no processo eleitoral dos órgãos internos da Misericórdia.

(2) Pelo facto de terem participado nessa deliberação de demissão elementos estranhos à Mesa Administrativa da Ré, isto é, as directoras de lares (…) e (…) e ainda a funcionária administrativa (…).

Pedem ainda, como se disse, uma indemnização por danos não patrimoniais.

b) Os Réus contestaram e começaram por invocar a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria.

Dizem que a Santa Casa da Misericórdia de . tem personalidade jurídica de direito canónico e que a deliberação em causa não pode ser apreciada pelo tribunal judicial por se tratar de uma matéria do foro canónico, na medida em que se baseia numa decisão da Diocese de ..., com base em preceitos do direito canónico, na qual foi declarada a existência de uma situação de abandono da comunhão eclesiástica por parte dos Autores, facto que, depois, levou à sua exclusão do seio da Misericórdia.

Por outro lado, existe um acordo internacional (Concordata) entre o Estado Português e o Estado da Santa Sé, onde se prevê, expressamente, que as matérias relativas ao foro da Igreja Católica, como é o caso, fiquem à margem da jurisdição comum do Estado Português, pelo que, no caso, os tribunais judiciais portugueses não têm competência, face ao tipo de matéria em apreciação, para dirimirem o conflito que opõe os Autores à Ré Misericórdia, relativo à exclusão dos primeiros do universo dos seus associados.

c) Os Autores replicaram para reafirmarem que o tribunal é competente porque a matéria que deu origem ao processo se refere ao processo eleitoral para os órgãos sociais da Santa Casa da Misericórdia de ., isto é, ao seu funcionamento e à inibição dos seus poderes e não a questões relacionadas com a fé dos seus «Irmãos», estas sim, da competência do tribunal canónico.

d) Findos os articulados, em sede de audiência preliminar, o Sr. juiz, ao abrigo do preceituado nos artigos 101.º 105.º n.º 1, 493.º n.º 2 e 494.º, alínea a), todos do Código de Processo Civil, julgou procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal judicial da comarca da ..., em razão da matéria, e, em consequência, absolveu os Réus da instância.

É desta decisão que vem interposto o presente recurso.

e) Os Autores recorrem, em síntese, por entenderem, como já se disse e como logo referiram na petição inicial, que a matéria em causa não é do foro canónico.

Com efeito, dizem, a deliberação impugnada tem por fundamento o facto dos Autores terem sido demitidos da Irmandade pelos seguintes motivos:

(1) Pelo facto do Sr. Bispo ter declarado em relação a eles o «abandono da comunhão eclesiástica» para efeitos da aplicação do Cânone 316, n.º 1 e 2 do Código do Direito Canónico.

(2) Declaração que teve por fundamento o facto dos Autores terem recorrido aos tribunais judiciais, como se deixou indicado, para evitarem a produção de efeitos relativos a actos ilegais praticados no acto eleitoral de 18 de Dezembro de 2005, e terem sido, segundo declaração da tutela eclesiástica, «admoestados» por esta, no sentido dos tribunais judiciais não serem competentes para conhecer destes factos, e, por terem, segundo a mesma tutela eclesiástica, posto em causa o Decreto Episcopal de 24 de Novembro de 2006, ao terem instaurado processos no tribunal judicial.

Dizem que a deliberação de expulsão, por se fundar, não em questões de fé, mas no simples facto dos Autores terem recorrido ao tribunal judicial, é inconstitucional, violando, os artigos 13.º n.º 2 e 20.º da Constituição da Republica Portuguesa, que assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos direitos e interesses dos cidadãos portugueses, quando é certo existirem já decisões no âmbito de processos judiciais anteriores, entre as mesmas partes, a declararem a competência dos tribunais civis para conhecer destas matérias, com as quais a Ré Misericórdia se conformou.

Alegam ainda que a Ré Misericórdia se rege pelos seus estatutos, mas sendo uma instituição particular de solidariedade social (IPSS), cai sob a alçada do regime destas entidades traçado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro.

A matéria controvertida nos presentes autos corresponde a matérias relacionadas com processo eleitoral para os órgãos sociais da Misericórdia, bem como relativas ao seu funcionamento e à inibição de poderes dos órgãos sociais que compõem esta entidade, e à possibilidade de recorrer ou não aos tribunais civis, para apreciação dessas matérias.

E a vida interna de uma Misericórdia, não é algo que seja alheio ao Estado Português e consequentemente, à legislação que o norteia, em especial a Constituição da República Portuguesa e ao já citado Decreto-Lei n.º 119/83.

Por conseguinte, o tribunal é materialmente competente para conhecer da matéria constante da presente acção, ou seja, anular a deliberação que demitiu os Requerentes da Associação Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ., atendendo aos fundamentos nela constantes.

f) Não houve contra-alegações.

g) O objecto do recurso consiste, por conseguinte, em saber se os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para decidirem em relação às seguintes situações:

1 – Anulação da deliberação que excluiu os Autores do seio da irmandade da Santa Casa da Misericórdia da ... com fundamento no facto do Sr. Bispo ter declarado, o «abandono da comunhão eclesiástica por parte dos autores» para efeitos da aplicação do Cânone 316, n.º 1 e 2, do Código do Direito Canónico.

Declaração episcopal que, por sua vez, teve por fundamento:

a) O facto dos Autores terem recorrido aos tribunais judiciais com o fim de evitarem a produção de efeitos do acto eleitoral de 18 de Dezembro de 2005 relativo à eleição dos órgãos internos da Misericórdia;

b)Terem sido, segundo declaração imputada pelos Autores à tutela eclesiástica, «admoestados» por esta de que os tribunais judiciais não eram competentes para conhecer destes factos;

c) Por terem, segundo a apreciação valorativa da tutela eclesiástica, posto em causa o Decreto Episcopal de 24 de Novembro de 2006 ao terem instaurado a dita acção no tribunal judicial.

2 – Apreciação da regularidade da deliberação que excluiu os Autores pelo facto de terem participado nessa deliberação de demissão elementos estranhos à Mesa Administrativa da Ré, isto é, as directoras de lares (…) e (…) e ainda a funcionária administrativa (…).

3 – Danos não patrimoniais produzidos pela exclusão dos Autores do seio da irmandade da Misericórdia.

II. Fundamentação.

1. A matéria de facto relevante para a questão a decidir é a que resulta resumidamente da exposição dos factos feita atrás no relatório e que se passa a indicar:

a) Os Autores instauraram no tribunal judicial da comarca da ... uma acção a que coube o n.º ...-, com vista a obterem, segundo o pedido, a anulação do acto eleitoral ocorrido em 2005, relativo à eleição dos membros da Mesa da Associação Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ..

Os autores instauraram, depois, contra a Misericórdia outros processos, isto é:

A providência cautelar n.º ...-, com vista, segundo o pedido, a impedir as novas eleições marcadas para 29 de Outubro de 2006;

A providência cautelar n.º ..., a que se seguiu a acção n.º ...;

A providência cautelar n.º ..., destinada, segundo o pedido, a impedir os efeitos de outras eleições marcadas para 26 de Novembro de 2006;

A providência cautelar n.º ... destinada, segundo o pedido a definir judicialmente o conceito de «pleito» a que alude a al. c) do artigo 40.º do Compromisso (estatutos) da Ré Misericórdia;

A providência cautelar n.º ..., destinada, segundo o pedido, a suspender a produção de efeitos da deliberação da Ré Misericórdia de 14 de Outubro de 2007.

b) A Diocese de ..., com data de 2 de Setembro de 2008, emitiu a seguinte «Declaração»:

«Na sequência da efectiva normalização da vida institucional da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ., a Tutela Eclesiástica determinou não homologar os Corpos Eleitos no acto eleitoral de 18 de Dezembro de 2005 até que o mesmo fosse devidamente esclarecido. No entanto os senhores J (…)e A (…) resolveram recorrer ao Tribunal Civil colocando a autoridade eclesiástica em causa. Estes referidos senhores foram devidamente admoestados aqui no Paço Episcopal pela Tutela Eclesiástica, na pessoa do Delegado Diocesano para as Irmandades das Misericórdias e promotor de Justiça nesta Diocese, Cónego (…), e foram ainda admoestados mais tarde verbalmente via telefone, de que o tribunal Civil não era competente para estes assuntos das Irmandades das Misericórdias. Apesar destas admoestações recorreram aos tribunais civis, cessando deste modo a comunhão eclesiástica (Cân. 316, 1 e 2 do Código de Direito Canónico). Além disso, esta ruptura da comunhão eclesiástica foi gravemente concretizada na medida em que o Decreto Episcopal de 24 de Novembro de 2006 foi posto em causa pelo Tribunal Civil a pedido dos referidos senhores e estes várias vezes acusaram a Tutela Eclesiástica perante o Tribunal Civil.

Perante estes factos, certifico que estes senhores J (…) e A (…) abandonaram a comunhão eclesiástica e segundo o teor do Cân. 316 1 e 2 devem ser demitidos da Associação Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de .. Comunique-se isto aos próprios e à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de .» (cf. folhas 86 da providência cautelar).

c) A Mesa da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de . deliberou no dia 09 de Setembro de 2008, excluir os Autores como membros da Associação Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ., nestes termos:

« (…)

Estiveram presentes na reunião a Sr.ª Provedora (…), a Sr.ª Vice Provedora (…), o Tesoureiro (…), os secretários Sr.ª (…) e Sr. (…), ambas as directoras dos respectivos lares, Sr.ª (…) e Sr.ª (…) e ainda a administrativa Sr.ª (…).

Os presentes debruçaram-se sobre a seguinte ordem de Trabalho:

Ponto único – Conhecimento e decisão sobre o teor da declaração da Diocese de ....

A Mesa Administrativa tomou conhecimento da declaração (doc. 1) emitida pela Diocese de ... em dois de Setembro de dois mil e oito.

A Mesa Administrativa, após a leitura da declaração passou à votação quanto à demissão dos Senhores mencionados na mesma, tendo obtido cinco votos a favor.

Assim com base na declaração da Diocese de ... e após a votação da Mesa Administrativa, foi aprovado unanimemente, pela mesma, a demissão dos senhores J (…) e A (…) da Associação Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de . (…)» - (cf. folhas 82 da providência cautelar).

d) As referidas directoras dos Lares e a funcionária administrativa não votaram esta deliberação (cf. acta e assinaturas).

e) Com data de 24 de Novembro de 2006, (…) Bispo de ... emitiu o seguinte «Decreto»:

«Devido a diversas irregularidades no acto eleitoral de 18-12-2005, na Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ., os Corpos Gerentes eleitos naquela Assembleia Geral desempenham as suas funções ilegitimamente desde a sua tomada de posse até hoje, não tendo legitimidade e capacidade para convocar Assembleias Gerais nem para expulsar irmãos desta instituição.

Nesta sequência, são declaradas nulas as Convocatórias para as Assembleias Gerais de 29 de Outubro de 2006 e de 26 de Novembro de 2006 e a realização daquela Assembleia Geral e é também declarada nula a expulsão de dois irmãos votada na reunião da Mesa Administrativa no dia 23 de Outubro de 2006.

Para repor a legalidade na Irmandade e de harmonia com o Cân. 318 do Código de Direito Canónico e os artigos 9.º, 10.º e 11.º da Concordata de 2004, nomeamos uma comissão administrativa composta por: (…) Presidente; (…) Secretário; (…) Tesoureiro; (…) Vogal; (…) Vogal.

Esta Comissão Administrativa, com todos os poderes para administrar a irmandade, tem como objectivo principal preparar e convocar o próximo acto eleitoral da mesma Instituição e realizar, logo que possível, ainda dentro deste ano.

A transmissão de poderes e entrega de valores terá efeito imediato ainda no mesmo dia da recepção e conhecimento deste decreto (…)» - cf. folhas 129 da providência cautelar.

f) O artigo 1.º do «Compromisso da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de .» tem a seguinte redacção:

«1. A Irmandade…, fundada no ano de 1923 continua a ser uma associação de fiéis, constituída na ordem jurídica canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina social e moral cristãs.

2. No campo social exercerá, assim, a sua acção através da prática das catorze obras da Misericórdia tanto espirituais como corporais ([1]), e no sector especificamente religioso, sob a invocação de Nossa Senhora da Misericórdia, que é a sua padroeira, manterá o culto divino nas suas igrejas e exercerá as actividades que constarem deste compromisso e as mais que vierem a ser consideradas convenientes.

3. A Irmandade adquire personalidade jurídica civil e estará reconhecida como instituição privada de solidariedade social mediante participação escrita da sua erecção canónica feita pelo ordinário Diocesano aos serviços competente do Estado.

4. Em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis».

E o seu artigo 65.º, relativo à extinção tem o seguinte teor:

«1. Esta Irmandade da Misericórdia só poderá ser extinta pela autoridade competente e na forma legal, mediante deliberação favorável tomada pela assembleia geral, a qual reúna, pelo menos a votação concordata de três partes do número total de irmãos inscritos.

2. Em caso de extinção, os seus bens reverterão para outras obras ou instituições de natureza cristã e católica, existentes ou a criar na sede do concelho de ., tendo em consideração o disposto no artigo 59 do Decreto-Lei n.º 519-G-2/79 e mais legislação aplicável, tanto de Direito Civil como de Direito Canónico».

E o artigo 66.º diz o seguinte:

«A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia observará os preceitos da legislação que lhe for aplicável e, designadamente as disposições do Decreto-Lei n.º 519-G-2/79, de 29 de Dezembro de 1979 (10.º Suplemento)»

g) Este Compromisso foi aprovado em 25 de Novembro de 1982 pelo Bispo de ... e ..., nos seguintes termos:

«FAZEMOS SABER que por parte da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de . (…), desta Nossa Diocese, Nos foi apresentado Compromisso (Estatutos), devidamente actualizado, como foi votado na Assembleia Geral dos Irmãos, em sua reunião de 14 de Maio de mil novecentos e oitenta e dois, constando de (…), orientados para o pleno exercício das Obras de Misericórdia corporais e espirituais E nada obstando, depois de convenientemente examinado, à sua aprovação canónica…………………………………………………

HAVEMOS POR BEM conceder-lhe a nossa aprovação, esperando que todos os Irmãos correspondendo ao apelo de bem-fazer, possa continuar a ser, no mundo de hoje, testemunhas do espírito cristão que presidiu à criação das Misericórdias em Portugal.

Para reconhecimento da personalidade jurídica civil, como Instituição Privada de Solidariedade Social, Mandamos que se faça a necessária participação à Autoridade civil competente» (cf. folhas 79 da providência cautelar).

h) O pedido de reconhecimento da personalidade jurídica civil da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ., como instituição privada de solidariedade social, foi feito ao Director do Centro regional de Segurança Social de ... pelo Cónego (…), nos seguintes termos:

«Para efeitos do reconhecimento da personalidade jurídica da Irmandade (…).

Juntam-se para o efeito dois exemplares do Compromisso.

(…)

Hoje mesmo se comunica também a erecção canónica desta entidade ao Senhor Governador Civil de ..., nos termos da Concordata» (cf. folhas 80 da providência cautelar).

2 - Passando à análise das questões objecto do recurso.

Começando por indicar o enquadramento geral da situação trazida a juízo pelos Autores e objecção colocada pelos Réus no que respeita à competência do tribunal em razão da matéria, que o tribunal julgou ser procedente.
Nos termos do artigo 66.º do Código de Processo Civil, «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

O tribunal é, por conseguinte, incompetente em razão da matéria quando a lei prevê que a pretensão do Autor, estruturada pelos factos que integram a causa de pedir e pelo pedido apoiado em tais factos, seja apreciada por um tribunal de outra ordem jurisdicional, diversa daquela onde foi instaurada.

No que respeita ao caso dos autos, a questão da competência coloca-se entre os tribunais judiciais e os tribunais eclesiásticos.

Se se concluir pela incompetência material do tribunal judicial, segundo o preceituado nos artigos 101.º 105.º n.º 1, 493.º n.º 2 e 494.º, alínea a), todos do Código de Processo Civil, ocorre a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal judicial da comarca da ..., em razão da matéria, cuja estatuição implica a absolvição dos Réus da instância.

Cumpre, pois, verificar qual o estatuto jurídico da Ré Misericórdia.

Lançando um brevíssimo olhar sobre a História, para compreender um pouco melhor a matéria em que se move a presente acção, podemos verificar que as Misericórdias, como entidades associativas e tendo como escopo o exercício da denominadas «obras de misericórdia», foram e continuam a ser um fenómeno social de elevada importância no panorama da assistência social em Portugal desde o século XVI até aos dias de hoje, principalmente em tempos mais recuados quando as estruturas do Estado não assumiam tal actividade.

A primeira Misericórdia foi fundada sob a designação de «Santa Irmandade da Misericórdia de Lisboa», existindo uma impressão do respectivo «Compromisso» datada de 1516, o qual serviu de modelo a outras misericórdias que rapidamente se disseminaram por todo o território e depois pelos domínios portugueses ultramarinos.

Exarou-se na introdução desse Compromisso o seguinte: «para ordenarem uma irmandade e confraria sob o título, nome e invocação de Nossa Senhora Madre de Deus, Virgem Maria da Misericórdia… a qual confraria foi instituída no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1498, no mês de Agosto, na Sé Catedral desta mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa, por premisso e consentimento de mandado da Ilustríssima e mui católica senhora a Senhora Rainha D. Leonor… a qual a esse tempo era em os Reinos de Castela a aceitar a sucessão que lhe nos ditos Reinos era devida…» ([2]).

Como referiu J. Quelhas Bigotte «…nos tempos medievais, em que nasceram estas irmandades, os estatutos das associações religiosas eram aprovados pelo poder civil, como uma forma de reconhecimento público da sua personalidade, e o facto era aceite pelo poder eclesiástico sem qualquer espécie de contradição.

Na verdade, se essas associações de caridade fôssem apenas reconhecidas pelo Estado, seriam laicas, porque tinham só personalidade civil; se fossem somente aprovadas pelo Bispo, teriam apenas personalidade eclesiástica e ficavam privadas dos benefícios gerais concedidos a todas as associações pelo poder civil. Daqui provinha a vantagem de receberem reconhecimento dos dois poderes, o que o Estado fazia, em relação às de origem eclesiástica, pela aprovação dos estatutos respectivos» ([3]).

As Misericórdias tiveram sempre um papel destacado no âmbito da assistência social em Portugal, sendo elas, por vezes, em períodos mais recuados da nossa história, praticamente as únicas instituições a actuar sistematicamente neste campo.

Sempre estiveram ligadas de alguma forma à religião cristã e católica e dirigiram a sua acção para a prática das denominadas 14 obras de misericórdia, às quais também se faz referência no artigo 1.º do Compromisso da ora Ré Misericórdia, mas sempre gozaram de autonomia na prossecução das suas finalidades, mais nos séculos que nos precederam que nos últimos 30 anos.

Com efeito, como escrevem as historiadoras Isabel dos Guimarães Sá e Maria Antónia Lopes, «Até ao século XX foram associações independentes, actuando dentro da doutrina católica, tendo por objectivo praticar as obras de misericórdia para com os vivos e os mortos, totalmente autónomas da jurisdição eclesiástica e só respondendo perante o poder político central. O Estado Novo considerara-as instituições canonicamente erectas e o pós-25 de Abril entregou-as à tutela episcopal, o que Salazar nunca havia permitido» ([4]).

Vejamos então a situação jurídica actual da Ré Misericórdia.

Começando pelo seu «Compromisso», verificamos que foi elaborado em 14 de Maio de 1982 e aprovado em 25 de Novembro de 1982 por «Decreto» do Sr. Bispo de ... e ....

Os factos a que respeita o processo ocorreram no domínio do Código de Direito Canónico de 1917, nos termos do qual, segundo o seu Cân. 687, as associações de fiéis só adquiriam personalidade jurídica dentro da Igreja quando tivessem obtido do superior eclesiástico legítimo o decreto formal de erecção.

Afigura-se ter sido o caso com a prolação do mencionado decreto episcopal, aliado às disposições legais do Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro.

Com efeito, no que respeita ao direito do Estado Português, em 1982 estava em vigor este decreto-lei, o qual, nos termos do seu artigo 56.º, dispunha, acerca das Irmandades da Misericórdia, nos seguintes termos:

«1 - As irmandades da Misericórdia ou santas casas da Misericórdia são associações constituídas na ordem jurídica canónica com o objectivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina e moral cristãs.

2 - As irmandades da Misericórdia adquirem personalidade jurídica e são reconhecidas como instituições privadas de solidariedade social, mediante participação escrita da sua erecção canónica, feita pelo ordinário diocesano aos serviços competentes do Ministério dos Assuntos Sociais».

Realça-se que é a própria lei portuguesa que declara que as Irmandades da Misericórdia são «associações constituídas na ordem jurídica canónica» e que as mesmas podem adquirir personalidade jurídica (obviamente no âmbito da ordem jurídica portuguesa) mediante «participação escrita da sua erecção canónica, feita pelo ordinário diocesano aos serviços competentes do Ministério dos Assuntos Sociais».

Foi o que ocorreu no caso concreto.

Após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro, o pedido de reconhecimento da personalidade jurídica civil da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ., como instituição privada de solidariedade social, foi feito ao Director do Centro regional de Segurança Social de ... pelo Cónego (…)

Verifica-se, por conseguinte, face a estes textos legais, que a Ré Misericórdia é uma associação constituída na ordem jurídica canónica e, ao mesmo tempo, é uma instituição privada de solidariedade social, portanto, com personalidade jurídica civil.


*

Ao regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro, sucedeu o constante do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, que, nos seus artigos 44.º a 51.º consagrou algumas disposições especiais para as instituições da igreja católica.
Assim, no artigo 44.º, dispôs que «A aplicação das disposições do presente Estatuto às instituições da igreja católica é feita com respeito pelas disposições da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940».

Sobre o reconhecimento das instituições canonicamente erectas, o artigo 45.º veio manter o regime do anterior Decreto-Lei n.º 519-G2/79, mas, quanto aos respectivos estatutos, o artigo 46.º, no seu n.º 2, veio exigir que «Os estatutos e respectivas alterações das instituições, uniões e federações de âmbito nacional abrangidas pelo artigo anterior…» fossem «aprovados e autenticados pela Conferência Episcopal», referindo-se, no n.º 3 seguinte, que «Os estatutos deverão consignar a natureza da instituição e a sua ligação específica à igreja católica e conformar-se com as disposições aplicáveis deste diploma».

E no artigo 48.º a lei estabeleceu que «Sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais».

O seu artigo 49.º veio ainda estabelecer que «As instituições da igreja católica poderão revestir qualquer das formas enunciadas no artigo 2.º», prevendo-se no n.º 1 deste artigo 2.º o seguinte: «1 - As instituições revestem uma das formas a seguir indicadas: a) Associações de solidariedade social; b) Associações de voluntários de acção social; c) Associações de socorros mútuos; d) Fundações de solidariedade social; e) Irmandades da misericórdia».

Ou seja, as ditas «instituições da igreja católica» a que se referem os artigos 44.º e seguintes serão, em regra, Irmandades da Misericórdia.

Especificamente sobre as Irmandades da Misericórdia, o artigo 68.º deste decreto-lei veio dispor o seguinte:

«1 - As irmandades da Misericórdia ou santas casas da Misericórdia são associações constituídas na ordem jurídica canónica com o objectivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios de doutrina e moral cristãs.

2 - Os estatutos das Misericórdias denominam-se “compromissos”».

Quanto ao regime jurídico aplicável, o seu artigo 69.º diz o seguinte:

«1 - Às irmandades da Misericórdia aplica-se directamente o regime jurídico previsto no presente diploma, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes são próprias.

2 - Em tudo o que não se encontre especialmente estabelecido na presente secção, as irmandades da Misericórdia regulam-se pelas disposições aplicáveis às associações de solidariedade social.

3 - Ressalva-se da aplicação do preceituado no n.º 1 tudo o que especificamente respeita às actividades estranhas aos fins de solidariedade social».

Relativamente aos «associados» rege o artigo 70.º, que diz o seguinte:

«1 - Podem ser admitidos como associados das irmandades da Misericórdia os indivíduos maiores, de ambos os sexos, que se comprometam a colaborar na prossecução dos objectivos daquelas instituições, com respeito pelo espírito próprio que as informa.

2 - As obrigações e os direitos dos associados constam do compromisso da respectiva irmandade».

Este é o quadro legal que resulta da lei portuguesa.


*

Vejamos agora as disposições do actual Código de Direito Canónico.
Em 1984 entrou em vigor um novo Código de Direito Canónico o qual operou uma distinção no seio das pessoas jurídicas canónicas entre pessoas jurídicas públicas e privadas que antes não existia.

Nos termos do Cân. 116, seu § 1.º, «As pessoas jurídicas públicas são universalidades de pessoas ou de coisas, constituídas pela autoridade eclesiástica competente para, dentro dos fins que a si mesmas se propuseram, segundo as prescrições do direito, desempenharem em nome da Igreja o múnus próprio que lhe foi confiado em ordem ao bem público; as outras são pessoas privadas».

Nas palavras de Pedro Lombarda e Juan Ignacio Arrieta, «Outro critério de divisão que o Código adopta para as pessoas jurídicas é o que as distingue em públicas e privadas. O critério diz respeito não ao próprio que têm (pois entende-se que todas elas tendem para o bem comum da Igreja), mas ao modo como o procuram: as públicas, actuando em nome da Igreja e, portanto, comprometendo-a de algum modo como instituição social; as privadas, actuando em nome próprio e sob exclusiva responsabilidade dos seus membros» ([5]).

No caso dos autos, a Ré Misericórdia, é, sem dúvida, segundo nos dizem os seus próprios estatutos, uma pessoa jurídica de direito canónico e, face ao critério mencionado, é uma pessoa jurídica canónica privada.

Segundo o Cân. 321 «Os fiéis, segundo as prescrições dos estatutos, dirigem e governam as associações privadas» e o Can. 323, no seu §1, dispõe que «Embora as associações privadas de fiéis gozem de autonomia, de acordo com o Cân. 321, estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica, de acordo com o Cân. 305, bem como ao governo desta autoridade».

Por sua vez o Cân. 305 diz:

«§ 1. Todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, à qual cabe cuidar que nelas se conserve a integridade da fé e dos costumes e velar para que não se introduzam abusos na disciplina eclesiástica, cabendo-lhe, portanto, o dever e o direito de visitar essas associações, de acordo com o direito e os estatutos; ficam também sujeitas ao governo dessa autoridade, de acordo com as prescrições dos cânones seguintes.

§ 2. Estão sujeitas à vigilância da Santa Sé as associações de qualquer género; e à vigilância do Ordinário local, as associações diocesanas e outras associações, enquanto exercem actividade na diocese».

Uma interpretação que se afigura adequada para estas disposições, como forma de estabelecer o convívio entre o poder de direcção dos fiéis e a autonomia das associações, por um lado, e o poder de vigilância e governo da autoridade eclesiástica, por outro, consistirá em as associações serem autónomas enquanto procederem de acordo com os seus fins estatutários, mas ficarem sujeitas à intervenção da autoridade eclesiástica quando alguma das respectivas acções ou deliberações se desvie desses mesmos fins, sem que, porém, a tutela canónica execute ela mesma quaisquer acções, sendo a sua função apenas a de impedir que sejam levadas a cabo acções tidas como desadequadas aos seus fins.

Sobre a admissão e exclusão de membros, que é o caso nuclear que se discute nesta acção, o Código de Direito Canónico diz o seguinte:

«Cân. 306 - Para que alguém possa gozar dos direitos e privilégios, das indulgências e outras graças espirituais concedidas a uma associação, é necessário e suficiente que, segundo as prescrições do direito e dos estatutos da associação, seja nela validamente recebido e dela não seja legitimamente demitido.

Cân. 307 § 1 - A recepção dos membros será feita de acordo com o direito e os estatutos de cada associação.

§ 2. A mesma pessoa pode inscrever-se em várias associações.

§ 3. Os membros de institutos religiosos podem inscrever-se em associações, de acordo com o direito próprio e com o consentimento do Superior.

Cân. 308 - Ninguém, legitimamente inscrito, seja demitido da associação, a não ser por justa causa, de acordo com o direito e os estatutos.

Cân. 309 - Compete às associações legitimamente constituídas, de acordo com o direito e os estatutos, estabelecer normas particulares relativas à associação, realizar reuniões, designar os moderadores, os oficiais, os funcionários e os administradores dos bens».


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Vejamos agora o que diz a Concordata celebrada entre a República Portuguesa e a Santa Sé ([6]).
O n.º 1 do artigo 2.º da Concordata dispõe que «A República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as de culto, magistério e ministério, bem como a jurisdição em matéria eclesiástica».

E no n.º 4 do mesmo artigo 2.º declara-se:

«É reconhecida à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa».

Por sua vez, o n.º 2 do artigo 10.º do mesmo diploma legal, estabelece que «O Estado reconhece a personalidade das pessoas jurídicas referidas nos artigos 1.º, 8.º e 9.º nos respectivos termos, bem como a das restantes pessoas jurídicas canónicas, incluindo os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica…».

E, no n.º 1 do seu artigo 11.º, declara-se que «As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1.º, 8.º, 9.º e 10.º regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, e têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas de idêntica natureza».

Por fim, no artigo 12.º, ainda do mesmo diploma, dispõe-se que «As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos do artigo 10.º, que, além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza».

Deste conjunto de normas resulta que em Portugal:

(a) O Estado Português reconhece a existência de uma ordem jurídica canónica e à Igreja Católica o exercício da respectiva jurisdição.

(b) O Estado Português reconhece a existência de pessoas jurídicas constituídas nos termos do direito canónico.

c) O Estado Português reconhece que as pessoas jurídicas canónicas se rejam pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades.

d) As pessoas jurídicas canónicas que prossigam fins de assistência e solidariedade têm de desenvolver a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português.


*

Cumpre agora verificar qual a natureza da Misericórdia Ré, isto é, se é uma pessoa colectiva constituída nos termos do direito canónico ou não é, pois se o for, poderá ficar sob a jurisdição canónica, caso contrário não.
Vejamos então.

Como se vê pelo teor do n.º 1 do artigo 1.º do Compromisso (estatutos) da Ré, acima transcrito na matéria de facto, a Ré é «…uma associação de fiéis, constituída na ordem jurídica canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e praticar actos de culto católico de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios da doutrina social e moral cristãs».

Sendo a Ré Misericórdia uma pessoa jurídica constituída na ordem canónica, está, logicamente, de acordo com o acima concluído, sujeita à jurisdição canónica e às normas do direito canónico.

Claro está, desde que a matéria em causa convoque a aplicação das normas de direito canónico.

É isto que a seguir se analisará.


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A matéria que está em causa nesta acção, aquilo que é pedido a este tribunal, em primeira linha, pois há outro pedido, é, a anulação da deliberação da mesa da assembleia geral da Ré Misericórdia que demitiu os Autores do número dos seus associados.
Recapitulando os factos que antecederam esta deliberação, os quais já foram fixados acima na matéria de facto provada, terão ocorrido irregularidades, não especificadas no que respeita ao acto eleitoral ocorrido em 18 de Dezembro de 2005, para eleição dos corpos gerentes da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ..

Por tal razão, o Sr. Bispo de ..., emitiu um «Decreto», com data de 24 de Novembro de 2006, através do qual anulou esse acto eleitoral, bem como as convocatórias para as Assembleias Gerais de 29 de Outubro de 2006 e de 26 de Novembro de 2006 e ainda uma deliberação que havia excluído os Autores como associados da Ré Misericórdia, e nomeou uma comissão para gerir a Ré e preparar novo acto eleitoral a realizar ainda nesse ano.

Por sua vez, os Autores instauraram no tribunal judicial da comarca da ... uma acção a que coube o n.º ...-, com vista a obterem a anulação do acto eleitoral ocorrido em 2005, relativo à eleição dos membros da Mesa da Associação Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ..

E instauraram ainda a providência cautelar n.º ...-, com vista, segundo o respectivo pedido, a impedir novas eleições marcadas para 29 de Outubro de 2006;

Bem como a providência cautelar n.º ..., a que se seguiu a acção n.º ...;

E também a providência cautelar n.º ..., destinada, segundo o pedido, a impedir os efeitos de outras eleições marcadas para 26 de Novembro de 2006;

Assim como a providência cautelar n.º ... destinada, segundo o pedido, a definir judicialmente o conceito de «pleito» a que alude a al. c) do artigo 40.º do Compromisso (estatutos) da Ré Misericórdia;

E, por fim, a providência cautelar n.º ..., destinada, segundo o pedido, a suspender a produção de efeitos da deliberação da Ré Misericórdia de 14 de Outubro de 2007.

Desconhecem-se, por falta de alegação das partes, as vicissitudes relevantes pelas quais passaram estas acções e providências cautelares.

Surgiu, depois, a «Declaração» da Diocese de ..., com data de 2 de Setembro de 2008, que veio a dar causa à exclusão dos Autores do número dos associados da Ré Misericórdia, cujo teor referia que os Autores haviam abandonado a comunhão eclesiástica e, segundo o teor do Cân. 316, 1 e 2, deviam ser demitidos da Associação Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ..

As razões da declaração da cessação da comunhão eclesiástica, como se diz na aludida «Declaração», residiram no facto da Tutela Eclesiástica não ter homologado os Corpos Eleitos no acto eleitoral de 18 de Dezembro de 2005 até que o mesmo fosse devidamente esclarecido e no facto dos Autores terem sido admoestados no Paço Episcopal pela Tutela Eclesiástica, de que o tribunal Civil não era competente para estes assuntos das Irmandades das Misericórdias e, ainda, de terem resolvido «…recorrer ao Tribunal Civil colocando a autoridade eclesiástica em causa apesar destas admoestações, cessando deste modo a comunhão eclesiástica».

Bem como, ainda, no facto do Decreto Episcopal de 24 de Novembro de 2006 ter sido posto em causa pelo Tribunal Civil a pedido dos referidos Autores e estes várias vezes terem acusado a Tutela Eclesiástica perante o Tribunal Civil.

É esta a matéria que está em questão quando se pergunta sobre a sua natureza e se estará ou não sujeita às regras do direito canónico.

Para se responder há que analisar as normas que já ficaram indicadas, quer do código de direito canónico, quer da ordem jurídica portuguesa, quer da Concordata e verificar se e como, se for caso disso, disciplinam estes factos.


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A resposta, deve passar pela conclusões a retirar destas premissas:
a) Os Autores argumentam que a questão que convoca o tema da competência ou incompetência dos tribunais judiciais em razão da matéria, tem a ver com os actos eleitorais da Ré Misericórdia e citam alguma jurisprudência no sentido de que os tribunais judiciais são competentes para decidir sobre estas matérias.

Admite-se que assim seja, desde que se trate de questões eleitorais acerca das quais a jurisdição canónica não possua disciplina normativa.

Nesse caso, na ausência de previsão na ordem canónica as questões seriam resolvidas pela ordem jurídica estadual.

Caso contrário não, como se verá mais abaixo ([7]).

Porém, a causa de pedir e o pedido feitos pelos Autores não incidem sobre factos ocorridos durante a preparação, o decurso ou o apuramento de resultados de actos eleitorais.

O que é objecto desta acção, como primeiro e principal pedido, é uma deliberação, concretamente a deliberação referida no artigo 23 da petição inicial, tomada em 9 de Setembro de 2008 pela mesa da assembleia geral da Ré Misericórdia, exarada na respectiva acta a que coube o n.º 299, que excluiu os autores do universo de associados da Ré Misericórdia.

Os comportamentos que terão estado na génese da decisão de exclusão de associados é que tiveram origem em questões relativas a actos eleitorais internos da Ré Misericórdia, mas não são tais alegadas irregularidades eleitorais que aqui se apreciam.

b) É face a este conflito de interesses surgido no âmbito da Misericórdia Ré, entre um órgão desta, a Mesa, e dois dos seus associados, que cumpre definir qual a jurisdição competente para apreciar e decidir tal matéria.

Cumpre, pois, deixar claro que os factos em causa neste processo respeitam a relações internas de uma Misericórdia entre os seus órgãos e associados («irmãos») no que respeita à apreciação de condutas e normas relativas à exclusão de associados.

c) Sendo a Ré Misericórdia, nos termos do n.º 1 dos seus estatutos, «uma associação de fiéis, constituída na ordem jurídica canónica», esta disposição estatutária necessariamente há-de significar algo, ou seja, há-de ter existido uma finalidade subjacente a esta declaração.

A interpretação útil que resulta do sentido literal destas palavras indica, certamente, que a Ré Misericórdia pretendeu reger-se pela ordem jurídica canónica quanto aos aspectos susceptíveis de serem regidos por esta ordem jurídica, pois a Ré, embora constituída na ordem jurídica canónica, segundo os seus estatutos, também está integrada na ordem jurídica estadual, pelo facto de existir e desenvolver a sua actividade dentro dos limites territoriais do Estado Português.

Aliás, isto que se afirma é o que está de acordo com o artigo 69.º do Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro, em vigor à data da aprovação do «compromisso» da Ré Misericórdia.

Referia-se neste artigo, no seu n.º 1, que às irmandades da Misericórdia se aplicava directamente o regime jurídico previsto no Decreto-Lei n.º 519-G2/79, sem prejuízo das sujeições canónicas que lhes fossem próprias e acrescentava-se, no n.º 3, que se ressalvava desta aplicação tudo o que especificamente respeitasse às actividades estranhas aos fins de solidariedade social.

Ou seja, no que respeita ao regime jurídico relativo ao exercício da solidariedade social, previsto no Decreto-Lei n.º 519-G2/79, aplicava-se a lei do Estado e quanto às actividades estranhas a tal regime o Estado reconhecia que as misericórdias ficavam sob a alçada das «sujeições canónicas que lhes são próprias», isto é, da jurisdição canónica.

O Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, manteve este regime e até o reforçou ao dispor no artigo 48.º que, «Sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais».

Ou seja, a «orientação das instituições» e a aprovação «dos seus corpos gerentes e relatórios e contas anuais» passou, de acordo com a ordem jurídica estadual a caber à autoridade eclesiástica.

d) A afirmação constante da alínea anterior, no sentido de que os assuntos da Misericórdia Ré estranhos ao regime jurídico do exercício da solidariedade social, eram disciplinados pela ordem jurídica canónica, harmoniza-se com o disposto no n.º 1 do artigo 11.º da Concordata em vigor, onde se diz que as pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1.º, 8.º, 9.º e 10.º se regem pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades.

Resulta também desta norma da Concordata que há matérias que estão sob a jurisdição das autoridades canónicas e outras sob a tutela estatal.

Na Concordata especifica-se ainda que a tutela jurisdicional do Estado em relação às pessoas jurídicas canónicas se verifica nos casos referidos no seu artigo 12.º, isto é, nas acções executadas pela pessoas jurídicas canónicas quando exercem «fins de assistência e solidariedade», cujo «desenvolvimento e respectiva actividade» têm se ser levados a cabo «de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português».

Verifica-se, por conseguinte, que em face das disposições, primeiro do Decreto-Lei n.º 519-G2/79 e depois do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, e, mais tarde da Concordata, a Ré Misericórdia, sendo como é, uma pessoa jurídica constituída na ordem jurídica canónica, rege-se pela ordem jurídica estadual quando desenvolve a sua actividade na prossecução de «fins de assistência e solidariedade» e pela ordem jurídica canónica quanto aos restantes aspectos da sua actividade, desde que os mesmos, claro está, se subsumam a previsões das normas da ordem jurídica canónica.

Isto que acaba de se dizer significa que poderão existir ainda aspectos da actividade da Ré Misericórdia que, por serem estranhos quer ao direito canónico, quer ao regime jurídico do exercício da solidariedade social definido pelo Estado, terão de ser resolvidos, se carecidos de tutela jurídica, pela ordem jurídica estadual.

e) Cumpre agora descer à realidade do caso concreto para verificar se a anulação da deliberação da mesa da assembleia geral da Ré Misericórdia que demitiu os Autores do número dos seus associados é matéria da competência da jurisdição canónica ou dos tribunais judiciais.

Afigura-se inegável que a questão de saber se o comportamento de determinado associado constitui causa suficiente para a sua exclusão da associação, não respeita ao regime jurídico do exercício da solidariedade social.

E já se viu que o Estado só submete à sua jurisdição a actividade da Ré Misericórdia levada a cabo neste campo.

Por conseguinte, se a matéria em causa for regida pelo direito canónico, é essa a jurisdição que deve actuar, pois, como acima se referiu, só se existir um conflito de interesses não tutelado pela ordem jurídica canónica é que a lacuna terá de ser preenchida pela ordem jurídica estadual.

Não é, porém, o caso.

O Código de Direito Canónico prevê a exclusão de sócios das associações de fiéis nos seus cânones 307 a 309, nomeadamente o seu Cân. 308, onde se diz que «Ninguém, legitimamente inscrito, seja demitido da associação, a não ser por justa causa, de acordo com o direito e os estatutos».

No caso, como se viu, a autoridade eclesiástica considerou que os associados, ora Autores, haviam abandonado a comunhão eclesiástica e segundo o teor do Cân. 316, 1 e 2, deviam ser demitidos da Irmandade.

Na sequência desta comunicação a Mesa da Ré Misericórdia excluiu os Autores do número dos seus associados.

Esta questão do comportamento dos dois associados, sua apreciação para efeitos de exclusão e efectiva exclusão dos mesmos do seio da associação, inseriu-se no âmbito dos assuntos internos da Ré Misericórdia e não respeitou, ou não afectou, interesses de terceiros não associados, pelo que, a ordem jurídica estadual não tem fundamento para intervir.

Não tem de intervir para apreciar o mérito da decisão de exclusão dos Autores.

Designadamente, para ponderar se a reacção dos Autores, através dos tribunais civis, com a instauração de acções e providências cautelares, contra o que entenderam constituir violação das regras eleitorais para a constituição da Mesa da Misericórdia, podia ou não podia justificar a sua exclusão do número de associados da Ré Misericórdia.

Ora, pelo que se vem referindo, esta matéria insere-se na jurisdição canónica, nos seus cânones 307 a 309, pelo que, nos termos do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, e da Concordata, os assuntos relativos a esta ordem jurídica são resolvidos por esta jurisdição e não pelos tribunais judiciais.

Aliás, a jurisdição canónica poderia ter sido chamada pelos Autores a resolver o seu conflito com a Ré Misericórdia, no sentido de saber se a decisão de exclusão dos Autores, alegadamente por terem reagido através dos tribunais civis, constituída causa justificada para a exclusão, como exige o Cân. 308 do Código de Direito Canónico.

Não seguiram esse caminho.

Face ao que fica dito, a conclusão que se retira é a de que os tribunais judiciais são incompetentes para apreciar a matéria em causa.

Os Autores insurgem-se, é certo, contra esta solução, como se vê pelo teor das suas alegações, pois entendem que a jurisdição canónica só intervém em questões de «fé».

Independentemente de se saber em que consistirá a delimitação do que sejam «questões de fé», por certo que a questão dos autos não é uma «questão de fé», mas não é esse, como se vê do exposto, o critério delimitativo das duas jurisdições que resulta da lei.

Ora, o Estado, através das leis e da celebração da Concordata com a Santa Sé quis que certas questões, em certas matérias, fossem resolvidas juridicamente por normas pertencentes à ordem jurídica canónica.

Aos tribunais judiciais cabe apenas aplicar esta lei.


*

Há ainda a apreciar a questão da deliberação de expulsão ser inconstitucional, por violar os artigos 13.º n.º 2 e 20.º da Constituição da Republica Portuguesa, que assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos direitos e interesses dos cidadãos portugueses.
Esta questão não tem relevância na medida em que a invocação do vício da inconstitucionalidade só respeita a normas que tenham sido aplicadas nos fundamentos da decisão do tribunal, mas não ao conteúdo material de uma deliberação de uma misericórdia.

Com efeito, os artigos 277.º e seguintes da Constituição da República Portuguesa referem-se sempre à inconstitucionalidade de «normas» («São inconstitucionais as normas…»), não de decisões ou deliberações.

Por conseguinte, esta invocação de inconstitucionalidade não tem relevo jurídico por não poder desencadear quaisquer efeitos materiais ou processuais.


*

Quanto ao facto de terem participado na aludida deliberação de demissão elementos estranhos à Mesa Administrativa da Ré, isto é, as directoras de lares (…) e ainda a funcionária administrativa (…).
Cumpre clarificar que estas pessoas não votaram a deliberação.

Apenas estiveram presentes no espaço físico em que decorreu o acto deliberativo e não se sabe sequer o que tais pessoas aí fizeram.

Sendo assim, não se vislumbra que estes factos convoquem a aplicação de alguma norma jurídica.

Seja como for, trata-se de questão interna atinente ao funcionamento da Ré Misericórdia, subtraída à apreciação dos tribunais pelas mesmas razões já atrás mencionadas.

Conclui-se, por conseguinte, que este fundamento não tem relevância jurídica.

3. Quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais.

Relativamente a este pedido a situação é diversa.

Os tribunais judiciais têm competência material para apreciar um pedido de indemnização por danos não patrimoniais fundados em eventuais actos ilícitos conexos com a decisão que excluiu os Autores do universo dos associados da Ré Misericórdia, por serem chamadas a intervir na decisão as normas dos artigos 483.º e 496.º do Código Civil.

Se os danos existiram ou não é questão que não se coloca neste momento em que apenas se aprecia a regularidade da instância.

Trata-se de um pedido que abstractamente se baseia no cometimento de actos ilícitos de natureza extracontratual por parte dos Réus, sendo matéria estranha às normas que definem os campos de jurisdição da ordem jurídica portuguesa e da ordem jurídica canónica, nos termos previstos, designadamente, na aludida Concordata entre o Estado Português e a Santa Sé.

Nesta parte o recurso procede.

III. Decisão.

Considerando o exposto:

1 - Julga-se o recurso improcedente na parte relativa ao pedido de anulação da deliberação tomada pela Mesa da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de ., no dia 09 de Setembro de 2008, constante da acta desta entidade com o n.º 299, devido ao facto dos tribunais judiciais serem incompetentes em razão da matéria para apreciar o pedido, por ser competente a jurisdição canónica, confirmando-se, nesta parte, a sentença.

2 - Julga-se o recurso procedente na parte relativa ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais, por se tratar de matéria da competência material dos tribunais judiciais, pelo que, nesta parte, se revoga a decisão recorrida.

3 - Custas na proporção do vencimento e decaimento, sendo o vencimento dos Autores relativo à quantia que pedem a título de danos não patrimoniais.


*


Alberto Ruço ( Relator )
Judite Pires
Carlos Gil

[1] As 14 obras de misericórdia dividem-se em sete espirituais e outras tantas corporais.

São espirituais as seguintes: ensinar os simples (a criação e educação dos expostos, isto e, recém-nascidos ou crianças abandonados); dar bom conselho; castigar os que erram; consolar os tristes desconsolados (visitas ao domicílio, cadeias, hospitais, acompanhamento de condenados à forca); perdoar a quem errou; sofrer as injúrias; rogar a Deus pelos vivos e defuntos.

E corporais estas: remir cativos e presos; curar os enfermos; cobrir os nus; dar de comer aos famintos e de beber aos que têm sede; dar pousada aos peregrinos e pobres; enterrar os mortos - J. Quelhas Bigotte A Situação Jurídica das Misericórdias Portuguesas, pág. 128 a 130, Coimbra/1959).

O Catecismo da Igreja Católica, no seu parágrafo 2447 (pág. 516, Gráfica de Coimbra/1993), refere-se a esta matéria da seguinte forma: «As obras de misericórdia são as acções caridosas pelas quais vamos em ajuda do próximo, nas suas necessidades corporais e espirituais. Instruir, aconselhar, consolar, confortar são obras de misericórdia espirituais, como perdoar e suportar com paciência. As obras de misericórdia corporais consistem, sobretudo, em dar de comer a quem tem fome, albergar quem não tem tecto, vestir os nus, visitar os doentes e os presos, sepultar os mortos. Entre todos estes gestos, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna e também uma prática de justiça que agrada a Deus».
[2] J. Quelhas Bigotte, ob. cit., pág. 67/68.

[3] Ob. cit., pág. 110/111.
[4] História Breve das Misericórdias Portuguesas (1498-2000), pág. 124, Imprensa da Universidade de Coimbra.
[5] Código de Direito Canónico Anotado, tradução de José A. Marques, 2.ª Edição, pág. 142, Braga/1997.

[6] A Concordata é uma convenção internacional que, tendo sido, como foi, regularmente ratificada e aprovada vigora na nossa ordem jurídica interna (cf. n.º 2 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.

Foi provada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 74/2004 – DR. I Série-A, n.º 269, de 16 de Novembro de 2004 – e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 80/2004 – DR, 1.ª Série-A, n.º 269, de 16 de Novembro de 2004.

Nos termos do seu artigo 33.º, conjugado com o Aviso n.º 23/2005, de 26 de Janeiro de 2005, publicado no DR, I Série-A, n.º 18, de 26 de Janeiro de 2005, a Concordata entrou em vigor na nossa ordem jurídica no dia 18 de Dezembro de 2004.

[7] O Supremo Tribunal de Justiça através do seu acórdão de 27 de Janeiro de 2005, consultável em http://www.gdsi.pt, processo n.º 04B4525, no qual se pedia que certa Misericórdia fosse intimada no sentido de se abster de dar posse aos membros de uma lista que havia concorrido às eleições e de os investir nos respectivos cargos, sob pena de se correr o grave risco de pessoas não habilitadas, nem legitimadas para os cargos, poderem praticar actos lesivos da boa gestão e administração do património da instituição, decidiu que os tribunais judiciais não eram competentes para apreciar tais matérias relativas ao contencioso eleitoral.

O seu sumário é o seguinte: «1. O art. III da Concordata de 1940 reconhece à Igreja Católica o poder de se organizar livremente de harmonia com as normas do Direito Canónico, e constituir, por essa forma, associações ou organizações, a que o Estado reconhece personalidade jurídica, no condicionalismo aí referido, sendo as mesmas administradas sob a vigilância e fiscalização da competente autoridade eclesiástica.

2. Se tais associações, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente, conforme dispõe o art. IV da referida Concordata.

3. Interpretando este segmento da norma concordatária, o legislador, no DL 119/83, de 25.2, definiu as áreas de tutela do Estado e as da Igreja Católica.

4. No caso das Misericórdias, associações de fiéis, constituídas na Ordem Jurídica Canónica, cabe ao Ordinário diocesano a aprovação dos respectivos corpos gerentes.

5. Essa aprovação abrange as irregularidades na admissão de "irmãos", bem como as do respectivo processo eleitoral».

No mesmo sentido, cf. o ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Fevereiro de 2005, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 05B116 («O acto da Mesa Administrativa de uma Misericórdia relativo à admissão, filiação ou adesão de novos irmãos como membros efectivos da Irmandade respeita exclusivamente à vida interna ou inter-orgânica da instituição em causa, cuja fiscalização e tutela competem, por isso, ao “Ordinário Diocesano”» - sumário do acórdão).

Bem como, mais recentemente, o ac. da Relação do Porto, de 27 de Abril de 2009, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 63/08.0TBALJ.P1 («I - A concordata de 2004 reforça a autonomia e separação de poderes entre Estado e Igreja Católica. II - As condições das candidaturas, idoneidades dos seus membros, as irregularidades e vícios da convocação, no que respeita à eleição dos corpos gerentes de uma Misericórdia, como problema interno dessa instituição, compete ao ordinário Diocesano, como autoridade eclesiástica. III - Não cabe aos tribunais judiciais, por serem materialmente incompetentes, a preparação e julgamento das irregularidades, vícios de convocação, oportunidade de marcação, da Assembleia-Geral da Misericórdia, por respeitarem à eleição dos corpos gerentes dessa instituição»
- sumário do acórdão).

sábado, 1 de janeiro de 2011

2011 - Ano Europeu do Voluntariado

Do sítio do Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado, extraímos:
"No dia 27 de Novembro de 2009, o Conselho de Ministros da União Europeia, declarou oficialmente 2011, Ano Europeu das Actividades Voluntárias que Promovam uma Cidadania Activa.
O Ano Europeu tem por objectivo geral incentivar e apoiar os esforços desenvolvidos pela Comunidade, pelos Estados-Membros e pelas autoridades locais e regionais tendo em vista criar condições na sociedade civil propícias ao voluntariado na U.E. e aumentar a visibilidade das actividades de voluntariado na U.E.

Este objectivo geral será operacionalizado através de 4 grandes objectivos específicos:

1. Criar um ambiente propicio ao voluntariado na U.E;
2. Dar meios às organizações que promovem o voluntariado para melhorar a qualidade das suas actividades;
3. Reconhecer o trabalho voluntário;
4. Sensibilizar as pessoas para o valor e a importância do Voluntariado."
Teve hoje início o Ano Europeu do Voluntariado.
Em boa surgiu esta iniciativa da União Europeia.
Desde tempos imemoriáveis, desde o alvorecer da Humanidade que o Homem desenvolve actividade Voluntárias.
Sobressai, entre essas actividades, a interajuda.
Porque o Homem é um Ser Social a sua acção ocorre num meio influenciado pelas circunstâncias que o envolvem.
O Homem isolado talvez consiga sobreviver, mas dificilmente conseguirá viver.
O Home é um ser complexo da qual resulta a existência de necessidades, ambições e aspirações.
A plenitude dessas necessidades jamais conseguiu ser satisfeita com os recursos próprios.
A interajuda surgiu quando o Homem sentiu necessidade de pedir ajuda e/ou quando se sentiu impelido a ajudar o seu Irmão carente de ajuda (que não pedia por uma imensidão de razões sibejamente conhecidas).
Asssim surgiu o Voluntariado. Perante a necessidade dos que necessitam de ajuda, há sempre quem esteja disponível para ajudar.
Uma "cultura" ou estado de espírito que felizmente nunca sendo maioritário convenceu alguns que todas as necessidades seriam supridas com profissionais das mais diversas áreas do conhecimento. O Walfare State é resultado dessa visão das sociedades.
Porque os recursos não são ingotáveis, para os mais realistas sempre houve a convicção que profissionalizar toda a ajuda Humana seria imposível. E assim continuaram a apostar no desenvolvimento e concretização de actividades Voluntárias, principalmente, dirigidas aos que mais necessidades apresentavam e menos recursos disponíveis possuiam.
O Voluntariado tem subjacente a ideia ou o ideal da Solidariedade que nas Misericórdias se designa por Caridade cuja amplitude é inconmensurávelmente maior.
O Voluntariado para a Caridade Cristã visa levar à prática a Doutrina Social da Igreja, prncipalmente, através da prática das 14 Obras de Misericórdia.
Nas Misericórdias, ao longo de já mais de 5 séculos, o Voluntariado permitiu atenuar, diminuir e até erradicar as mais diversas situações de carência, pobreza e exclusão.
Foram milhares e milhares, senão mesmo milhões, de Mulheres e Homens Bons e de Bem que disponibilizaram capacidades e bens para os seus Irmãos mais Pobres e Desprotegidos.
As Misericórdias não serão alheias à História do Voluntariado de Caridade. Poder-se-á até considerar que não será possível escrever essa História sem as Misericórdias.
Agora que a União Europeia decidiu evocar o Voluntariado ao longo deste Ano de 2011, importa aprofundar o conhecimento sobre o Voluntariado das Misericórdias.
Este conhecimento constituirá o alicerce da acção do presente assim como a projecção do futuro.
Esta evocação do Voluntariado coincide com um período de crise financeira com consequências na economia de uitas países que não souberam ou não quiseram inetrvir a tempo de evitar.
É nestas época de crise que mais se faz sentir a importância do Voluntariado.
É nestas épocas de crise quando os recursos finaceiros mais escasseiam que se reconhece a importância fundamental do Voluntariado.
Importa, pois, reconhecer a importância que tiveram na acção das Misericórdias ao longo de mais de 5 séculos de história, aqueles que de forma anónima, tal como a Bíblia recomenda (dá com uma mão de forma que a outra não veja) desenvolveram acções notáveis de Bem Fazer.
Estimular através da divulgação de boas práticas será uma das formas possíveis de atracção de Mulheres e Homens disponíveis para a prática do Bem.
Aqui evocamos os três Princípios (desafios) de SS João Paulo II às Misericórdias em 1992:
- OPÇÃO PREFERENCIAL PELOS POBRES
- DESTINO UNIVERSAL DOS BENS
- SEJAMOS PROMOTORES E FAUTORES DA CIVILIZAÇÃO DO AMOR
Aqui está, de uma forma bem simples mas de uma intensidade enorme, um verdadeiro programa para a acção do Voluntariado de espírito Cristão (e não só).
Reconhecer o Bem que outros fazem.
Agradecer o que fizeram pelos Irmãos que Sofreram ou sofrem.
É também Caridade/Solidariedade.
As Misericórdias poderiam e deveriam aproveitar a dedicação de 2011 ao Voluntariado para encomendarem a realização de estudo que revelasse a importâncoia e a dimensão do Voluntariado no seu seio ao longo da sua já longa Historiografia.
As Misericórdias reunidades na sua União - a União das Misericórdias Portuguesas - deveriam homenagear alguns daqueles que ao longo da sua história desempenharam papel relevante, como Voluntários, ao serviço da causa e em cumprimento da Missão, das 14 Obras de Misericórdia.
O Voluntariado foi sempre uma realidade ao longo da História da Humanidade.
Não está em perigo o seu fim.
Mas poderá e deverá ser ampliado.
Esta ampliação e dedicação poderá ser melhor realizada por aqueles que mais têm, ajudarem os que mais necessitam.
Evocar os Bons exemplos.
Escrever o que foi.
Estimular a adesão e participação Voluntária.
Aqui estão alguns desafios que deveriam merecer a atenção de todos quantos estão empenhados na construção de um Mundo Melhor e mais Solidário.
Ao se dedicar o ano de 2011 ao Voluntariado, será um período suficientemente longo para permitir divulgar, promover e estimular a adesão à prática do Bem integrando o movimento universal das Misericórdias enquanto "instrumentos" da Igreja para a concretização da Doutrina Social da Igreja através da acção prática diária das 14 Obras de Misericórdia.
Este movimento universal das Misericórdias sendo inspirado na Doutrina de Cristo não é "monopólio" da Igreja, mas sim universal na sua verdadeira acepção. Todos a ele podem aderir assim como tem como destinatário o Homem na sua plenitude.
A Caridade Cristã é concretizada pelos(as) Homenes e Mulheres de Boa Vontade inspirados nos Princípios e Valores da Fé. Diz a sabedoria popular que " A Fé move montanhas". Foi com esta Fé que os Voluntários, ao longo de já mais de 5 séculos, mantiveram este movimento universal das Misericórdias. Estas enquanto Instituições físicas foram alvo, por várias vezes, de apropriação dos seus bens. Mas a Fé com que sempre foi vivida a Instituição Misericórdia eliada ao Voluntariado que sempre lhe deu Corpo conseguiu sobreviver apesar das mais variadas "investidas" que sofreu ao longo da História de mais de 500 anos.
É esse Voluntariado anónimo que importa evocar ao longo do ano de 2011, homenageando-o.
Quanto mais amplo for o Voluntariado nas Misericórdias maior amplitude pode ser a sua acção em prol dos mais necessitados.
As Misericórdias vivem um momento algo conturbado e de indecisão sobre a melhor forma de administrá-las.
Se por um lado aparecem alguns a defender a a promover para si próprios o profissionalismo da administração das Misericórdias, a esmagadora maioria, fiel aos Princípios inspiradores da sua missão defende que a administração das Misericórdias deverá permanecer no regime de Voluntariado, admitindo excepções sempre e quando houver fundamento para tal.
As Misericórdias tiveram a capacidade de resistir a todas as adversidades porque sempre foram capazes de, em cada momento da sua história, quando aparecia alguém a querer inverter as regras, manter os Princípios e Valores inerentes ao Voluntariado enquanto forma de servir o Irmão que sofre.
Se os recursos das Misericórdias sempre foram escassos e tem por destinatários preferenciais, os seus recursos, nomeadamente, os financeiros não devem ser apropriados por aqueles que juraram cumprir mandatos em regime de Voluntariado. É necessário, é possível e tem que ser a regra geral que a administração das Misericórdias permaneça nas mãos de quem está disponível para servir em regime de Voluntariado.
É este Voluntariado que deve ser Homenageado este ano de 2011.
E deverá sê-lo de uma forma anónima.
De acordo com a tradição Portuguesa uma das formas possíveis será a construção de um Monumento dedicado ao Voluntário.
Poderá ser feito através de concurso de ideias, o que permitirá um contributo das Misericórdias para o desenvolvimento da cultura.
Este Monumento a construir deverá ter a participação de todas as Misericórdias Portuguesas de acordo com as suas possibilidades e disponibilidades financeiras. Poderia também receber contributos financeiros do Estado e das Empresas que se quisessem associar.
Para terminar esta ideia, deixamos uma sugestão de local para a instalação desse Monumento. Ou melhor, vamos deixar três sugestões todas elas com fundamentação.
Desde logo na cidade de Lisboa.
Porquê?
Tão simplesmente porque foi em Lisboa que foi fundada a primeira Misericórdia em 1498. E se possível em local próximo da Sé de Lsiboa já que foi aí que a Misericórdia foi fundada.
Outro local poderia ser Viseu.
Porquê?
Porque foi aí que nasceu a União das Misericórdias Portuguesas fará 35 anos no próximo mês de Novembro. E porque a União das Misericórdias Portuguesas agrega o universo institucional das mesmas. Aí, dispõem as Misericórdias de uma propriedade de sua plena titularidade, a Quinta de Sto Estevão, que foi dadao pelo estado, à UMP como compensação, a título de indemnização às Misericórdias, pela estatização/nacionalização dos seus hospitais em 1975 e 1976.
Um terceiro lugar onde também poderia ser instalado esse Monumento ao Voluntário poderia ser Fátima.
Porquê?
Porque também aí as Misericórdias possuem uma ampla propriedade na qual está instalado o Centro João Paulo II e onde está já a Imagem de Nª Srª das Misericórdias. Por este facto esta seria uma alternativa só por exclusão das duas anteriores.
O Voluntariado nas Misericórdias pode e deve ser estimulado e promovido ao longo de todo este ano.
Já que foi proposto às Misericórdias, em Congresso realizado em 2009 na Ilha da madeira, a criação de um Banco de Voluntariado, apesar de um atraso de 2 anos, terá plena justificação a criação e instalação do Banco de Voluntariado aprovado pelas Misericórdias e cuja responsabilidade de instalação é competência da UMP.