Manuel Lemos: Misericórdias são cada vez mais imprescindíveis em tempos de crise
Manuel Lemos é presidente da União das Misericórdias Portuguesas. Muitos anos da sua vida estão e continuarão a estar dedicados às instituições sociais. Sucedeu no cargo ao padre Vítor Melícias, depois de o ter acompanhado em alguns mandatos.
barlavento – Como é que encara o seu atual mandato, comparativamente com o anterior, sabendo-se que introduziu profundas alterações na União?
Manuel Lemos – O atual ciclo da União das Misericórdias é de afirmação e vai durar naturalmente alguns anos. As Misericórdias, na sociedade portuguesa, nos últimos dez anos, cresceram muitíssimo e hoje são as primeiras, segundas ou terceiras maiores empregadoras ao nível dos concelhos.
Em Faro, por exemplo, a Misericórdia é o segundo maior empregador. As Misericórdias fundaram-se ao longo dos séculos porque eram necessárias e hoje são imprescindíveis.
Isso obriga a União a ter uma dupla atividade – interna, no sentido de se preparar para dar ajuda às Misericórdias e a essa transformação profunda que estão a fazer, e externa, no sentido de dar afirmação desta incontornabilidade das Misericórdias na sociedade portuguesa.
O primeiro ciclo foi mais interno, de reabilitação da casa e de preparação de apoio às nossas quatrocentas Misericórdias. Este segundo é de afirmação externa das Misericórdias.
b. - Discute-se a necessidade de descentralizar competências para os Secretariados Regionais. Estas estruturas estão preparadas para os novos desafios?
M.L. - O nosso sentido da descentralização é aproximar, pela via dos Secretariados, a União de cada uma das Misericórdias. Constatamos que esta é uma reflexão que devemos fazer.
Refletir sobre se devemos manter a estrutura distrital ou avançar cada vez mais no sentido de um estrutura regional. Isso é um processo de mudança.
Há secretariados com gente muito nova e há outros com gente mais antiga. Penso que isso está muito na cabeça das pessoas.
A idade para mim conta pouco, o que conta é a energia de cada Secretariado e a capacidade de interagir entre cada uma das Misericórdias e a União, sendo certo que há que transmitir alguns ventos de mudança, que às vezes são necessários.
b. - A União tem duas dinâmicas. Foi fundada como entidade corporativa, agregadora das Misericórdias, mas simultaneamente tem grande intervenção em diferentes áreas. Não há aqui uma contradição?
M.L. - Nós só temos intervenção diretas numa área, que é a deficiência profunda. Porquê? Porque lidar com a deficiência profunda é dificílimo.
Então as Misericórdias acharam que fazia muito mais sentido que fosse a própria União a ter as estruturas de deficiência profunda do que cada uma delas.
Já temos dois grandes equipamentos de deficiência profunda e vamos fazer um terceiro, em Borba.
O que temos são normalmente experiências piloto ou ações piloto. Temos um lar em Lisboa que funciona como uma escola e vamos agora fazer uma unidade de Alzheimer, porque entendemos que é um dos mais graves problemas do envelhecimento.
Vale a pena fazermos uma experiência em que vamos concentrar todos os esforços.
Essa compatibilidade, quase como mais uma Misericórdia e a União como instrumento agregador das Misericórdias, nos últimos tempos, corre muito bem porque percebemos que é subsidiária da atividade corporativa. Para nós o fundamental é a atividade corporativa.
b.- Algumas Misericórdias são críticas relativamente à política expansionista da União, nomeadamente a de Borba...
M.L.- Não há propriamente uma crítica. Acho que o que a Misericórdia de Borba teve pena, e faz sentido que tenha pena, foi que um doador tenha feito a doação à União. Mas uma vez feita, nós tínhamos que respeitar a vontade do doador.
O doador terá sido claro em não querer deixar aquele equipamento à Misericórdia. Nesse sentido, o que a União vai fazer é aproveitar o terreno que ali está e construir um equipamento.
Com certeza que a Misericórdia de Borba vai ser um parceiro ativo da gestão daquele equipamento.
b. - Em que ponto estão as discussões dos acordos com o Governo, reconhecido o papel das Misericórdias como importante?
M.L. - Todos os Governos, sem exceção, sobretudo nos últimos dez anos, vêm a reconhecer o papel da economia social e, é por isso, que as Misericórdias há 200 ou 300 anos eram necessárias e hoje são imprescindíveis, porque a mesma resposta dada pelo Estado era dez vezes mais cara e menos eficaz.
Por isso, os Governos têm reconhecido a importância da cooperação com o setor social em geral.
Os últimos números disponíveis dizem que a economia social em Portugal representa 6 por cento do PIB, o que é um valor muito significativo.
Este é um processo dinâmico em que quem recebe nunca está satisfeito com o que recebe e quem paga acha sempre que paga muito.
Para resolver esta questão, a União, no processo de organização interna, rodeou-se de uma equipa de peritos que tem vindo a identificar quanto é que custa em média cada resposta social que damos.
Temos feito isso e depois confrontamos o Governo com esses valores.
Na questão dos idosos, onde o problema é mais candente e a disfuncionalidade preço/custo do serviço era mais significativa, já começámos a introduzir correções e o Estado já aceitou que o custo médio de um utente anda nos setecentos e tal euros e nós dizemos que anda nos 1100. Viemos em dois anos de 230 euros para 750.
Não queria adiantar dados, mas, dos trabalhos que temos tido, os números começam a ficar muito próximos. Portanto, julgo que vamos chegar a um acordo ainda este ano em relação ao custo. É um trabalho que exige persistência, tempo e bom senso.
Se é óbvio que o Estado tem que assumir a sua responsabilidade no custo das respostas sociais, já que é uma responsabilidade constitucional que lhe cabe, também é evidente que não cabe ao Estado suportar os maus erros de gestão desta ou daquela Misericórdia.
E por isso cabe à União das Misericórdias essa gestão do equilíbrio e é isso que temos vindo a fazer ao longo destes anos.
b. - No tempo de Ferro Rodrigues, falou-se nas farmácias sociais, hoje esta é uma ideia de que não se fala...
M.L. - Esse é um problema muito delicado e que passa por vários fatores. Na União Europeia, a questão das farmácias sociais tem-se levantado cada vez com maior acuidade.
Penso que, mais uma vez, é uma matéria que vai exigir o seu tempo para ser resolvida. Faz sentido que, em alguns casos, o setor social possa deter farmácias de oficina.
Essas coisas passam sem dor, e de vez em quando as posições extremam-se, mas, mais uma vez, nós somos especialistas em tempo.
Temos a consciência de que esta é uma matéria que está de novo em cima da mesa, que vai demorar o seu tempo a ser resolvida.
O setor social tem merecido, por parte das instâncias comunitárias, uma atenção especial, o que coloca o problema das farmácias sociais outra vez.
6 de Abril de 2010 15:00
helder nunes
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Manuel Lemos: Combate à pobreza não passa pela distribuição de dinheiro às pessoas
helder nunes
Para Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias, a pobreza deve-se à incapacidade de gestão das pessoas. Prestar serviços às comunidades mais carecidas é o caminho indicado, fugindo à entrega de dinheiro, cuja administração é sempre duvidosa. Eis a segunda parte da entrevista que Manuel Lemos deu ao semanário «barlavento».
b. - A política de apoio à terceira idade deve passar pelo apoio domiciliário, pelos lares...
M.L. - O envelhecimento é um processo. Há gente que precisa de ir logo para um lar, há gente que pode ficar cada vez mais tempo no apoio domiciliário.
Uma coisa é certa, não podemos transformar o imenso Portugal num quarto. Temos oito por cento de pessoas com mais de 65 anos, em breve teremos 32 por cento.
O processo de envelhecimento obriga, em cada comunidade, a um conjunto de respostas, não há nada versus este versus aqueloutro, ou lar versus unidade de cuidados continuados.
Temos que olhar para o envelhecimento como um processo e temos que ser suficientemente flexíveis, nós, as pessoas e o Estado, para, a cada instante, respondermos às necessidades das pessoas da forma mais eficaz e mais segura.
Hoje muita gente quer ir para um lar, não porque precise verdadeiramente de ir para um lar, mas porque tem medo de, no dia em que precisar, não ter lugar.
Só se dá resposta a esta necessidade se tivermos um apoio domiciliário efetivo. Então vamos conseguir libertar a pressão que existe em cima dos lares e em contrapartida tentamos responder às pessoas quando precisam.
b. - Como é que se combate a pobreza?
M.L. - Combate-se com persistência e tempo. Com medidas que não passam pela distribuição de dinheiro às pessoas. Pobreza é incapacidade de gestão de recursos.
Se distribuírem dinheiro às pessoas, elas gastam-no muitas vezes mal gasto. É nas escolas junto aos bairros pobres que as crianças têm um telemóvel de cada rede.
Digamos que há uma incapacidade da gestão de recursos. As Misericórdias sempre entenderam que o que é importante para combater a pobreza, nomeadamente num momento de grande contração económica como este que vivemos e viveremos nos próximos quatro a cinco anos, em vez de dar dinheiro às pessoas, é prestar-lhes serviços.
Querem comer, damos comida, querem segurança, damos segurança, querem afeto, damos afeto, querem ir ao médico, levamo-las ao médico, precisam de estar numa unidade de cuidados continuados, respondemos dessa forma.
Isto é mais importante do que dar dinheiro e a grande resposta do setor social geral e das Misericórdias em Portugal é colaborar com o Estado nesta fase para podermos prestar estes serviços.
b. - Foi eleito presidente internacional das Misericórdias. Que papel cabe às Misericórdias portuguesas no mundo?
M.L. - As Misericórdias são, em muitos aspectos, líderes mundiais na cooperação com o Estado. As nossas Misericórdias, se fossem alemãs, inglesas ou francesas eram impostas pela União Europeia, assim custa-nos mais, mas lá chegaremos.
É evidente que temos Misericórdias noutros países com atividades fantásticas, como as italianas, que são setecentas e são mais antigas que as portuguesas, e estão à nossa frente no apoio à pobreza envergonhada.
Têm soluções muito interessantes e por isso a Confederação Internacional das Misericórdias é sobretudo um espaço de diálogo, à volta de um ideário comum que são muito os valores da nossa civilização ocidental.
No momento em que estamos, com uma grande crise de valores, a circunstância de quase quatro mil instituições se terem juntado para trabalharem em conjunto é um grande sinal de esperança para a humanidade e para mim é uma honra enorme ter sido escolhido para liderar.
b. - O próximo congresso internacional, em 2012, vai ser em Portugal. Já há comissão formada, quais os temas que irão debater...
M.L. - O último congresso foi em Novembro, no Brasil, e o próximo será em Portugal, para passarmos o testemunho.
Não faz sentido que o presidente se prolongue no tempo e encontremos outro presidente de outra Nação, para que o efeito simbólico que tem se propague. Não temos ainda uma comissão. Já temos o local, será no Porto/Gaia.
Ainda não temos escolhidos os temas, mas, até ao final deste ano, em reuniões internacionais, vamos começar a escolher os temas que mais interessam às Misericórdias, mas andarão muito à volta da problemática do envelhecimento.
b. - As Misericórdias têm futuro ou vão ter grandes dificuldades nos próximos anos? Que medidas preconiza para responder a essa situação?
M.L. - As Misericórdias são instituições com muito futuro. Desfeito o mito de que os Estados iam responder a todas as necessidades das pessoas, que foi um mito do meio do século XX e já estamos no XXI, cada vez mais as sociedades são responsabilizadas através das suas instituições organizadas a tomarem conta de si.
Os Estados têm uma parcela de responsabilidades, mas não conseguem resolver esses problemas todos.
É evidente que hoje o grande problema da humanidade é a questão do envelhecimento e sobretudo nos países muito desenvolvidos, em que o envelhecimento é um problema que leva a mudar tudo. Vai mudar tudo, o consumo, os interesses, mas também vai mudar a própria população idosa que vai querer ter um computador.
As instituições da sociedade civil, como as Misericórdias, que têm valores seculares com os quais as populações se identificam, têm que ser protegidas pelas comunidades, porque elas são de alguma maneira a continuidade no tempo de um conjunto de valores em que nós acreditamos, que nos marcam e ao mesmo tempo são suficientemente flexíveis para acompanhar a mudança dos tempos, porque são instituições da comunidade.
8 de Abril de 2010 09:22
helder nunes
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